
Estudantes que conseguiram contratar o programa do Ministério da Educação (MEC) para cursar medicina em instituições de ensino privadas têm vivido pesadelos mensais. O programa viabilizado pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), que deveria ajudar a realizar o sonho de cursar medicina, tornou-se um gerador de dívidas. Muitos beneficiários não conseguem pagar o curso mesmo com o subsídio do governo devido ao valor excedente das mensalidades das faculdades, que superam o limite desembolsado pelo MEC, de até R$ 10 mil. A média dos valores praticados pelo mercado é de cerca de R$ 15 mil.
Como uma das regras para participar das modalidades do Fies é receber até meio salário mínimo ou três salários mínimos, muitos estudantes precisam arcar com o excedente, caso desejem se formar. O programa, mesmo quando a mensalidade se encontra dentro do teto, não custeia o valor cheio. Com isso, o estudante ainda paga uma parte como forma de coparticipação. Devido a esse aumento dos valores, o movimento "Fies sem teto" luta pelo reajuste do teto do financiamento estudantil e pelo reajuste das porcentagens praticadas no programa. O movimento defende que a coparticipação não é justa.
Caminho árduo
Para cursar medicina, o estudante carioca Luan Mello Marzulo Corrêa, 23 anos, paga mensalmente R$ 2,1 mil de coparticipação além do valor garantido pelo Fies Social. Em seu contrato, assinado em 2021, era previsto um reajuste anual do subsídio entre R$ 100 e R$ 200. Contudo, na prática, de acordo com o estudante, o aumento das mensalidades por meio das instituições de ensino é bem maior, de R$ 800 a R$ 1 mil por mês. "Eu sempre quis fazer medicina desde pequeno. Era meu sonho. Sou cardiopata e já operei o coração duas vezes. Acabei vivendo muito tempo em hospitais e me apaixonei pela área da saúde e pela medidina", contou.
Luan vem de família pobre e sabia que o maior desafio seria pagar para poder realizar o sonho. "Eu nunca tive dinheiro, condição para isso. E estudar para passar em uma universidade pública é muito complicado. Mas eu tentei o Fies e passei para medicina, na esperança que conseguiria cursar, porque teria tudo pago, ou, pelo menos, uma quantia considerável, compatível com a minha renda, mas não foi o que aconteceu", desabafou.
Para conseguir manter os estudos, seu pai, que é técnico de enfermagem, trabalha em quatro hospitais para pagar a mensalidade da faculdade de Luan. O estudante consegue ajudar com o dinheiro que ganha em um estágio, mas a situação é complicada, pois a mãe dele está desempregada no momento. "Mais de 70% da nossa renda vai para a mensalidade e, atualmente, conto com a ajuda de outras pessoas de fora, se não seria impossível manter essa faculdade", contou.
A baiana Priscila Tavares de Souza, 35, não conseguiu realizar o sonho de se formar em medicina e precisou abandonar o curso. Ela também assinou com o Fies na modalidade normal, em 2021, mas contou que os valores simulados e praticados são desiguais. "No momento da simulação, é um valor, e, no momento de assinar o contrato, é outro. E a minha coparticipação ficou em R$ 4,5 mil", lamentou.
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Diferentemente de Luan, Priscila não pode contar com a ajuda dos pais para pagar a mensalidade e ganha apenas um salário mínimo (R$ 1.518). Além disso, ela é mãe de uma criança com deficiência. "O teto dificultou tanto que eu não posso mais estudar. Infelizmente, tive de abandonar a faculdade, porque não tinha mais condições de pagar", relatou a estudante.
O que Priscila deseja, agora, é que o governo federal tome alguma providência para que outros estudantes, como ela, que deixaram o curso por não conseguir manter as mensalidades, possam retornar e adquirir o diploma. "Espero que não só eu, mas outras pessoas que abandonaram a faculdade porque não conseguiram pagar mesmo com o Fies possam voltar a estudar e para dar uma vida melhor e mais digna para as suas respectivas famílias", declarou.
Impasses
Devido à situação insustentável de milhares de estudantes de medicina que assinaram contrato com o Fies em alguma modalidade, o movimento "Fies sem teto" procurou parlamentares ligados à educação para obter ajuda e procuraram o MEC para negociar sobre o teto do financiamento. Na sexta-feira (7), houve uma reunião do movimento e do ministério, que foi conseguida por meio do deputado federal Dimas Gadelha (PT-RJ), na qual a pasta ouviu as demandas do movimento.
De acordo com o grupo, o que ficou decidido no encontro foi que o secretário substituto da Secretaria de Educação Superior do MEC (SESU), Adilson Santana de Carvalho, levaria a proposta de aumento do teto para o comitê gestor do programa. Santana explicou que dentro do comitê existem vários ministérios e o MEC ocupa somente uma cadeira e, para que o teto seja aumentado, é necessário quase a unanimidade de aceitação de todos os integrantes do colegiado.
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O movimento disse que o MEC concordou que é preciso haver uma manutenção adequada do Fies Social, que é a modalidade que mais preocupa a pasta no momento. Além disso, o órgão ficou surpreso com os relatos do movimento sobre as instituições de ensino que não estão oferecendo descontos nos valores excedentes ao teto garantido pelo programa.
No ano passado, foi criada a portaria n° 239 em que o ministério garante segurança jurídica às instituições que oferecerem desconto dos valores acima do teto para os estudantes do Fies Social. Mas a maioria evita, porque não são obrigadas a ofertarem o desconto.
O estranhamento, segundo o secretário Carvalho, deve-se ao fato de que a pasta conversou com a Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes) sobre a portaria e as instituições se comprometeram com o MEC, na época, a oferecer descontos. Entretanto, ao portal G1, Bruno Coimbra, diretor jurídico da Abmes, disse que a solução não pode vir das instituições de ensino.
"A proposta deve ser a de rever o teto [do MEC]. Não faz sentido que as faculdades criem mecanismos próprios e fora da política pública para resolver a questão. Não dá para cada instituição fazer um 'puxadinho': as maiores até podem conseguir [dar descontos], mas e as menores? Criaríamos uma distorção. A solução precisa ser a mesma para todos", disse.
Carvalho, então, solicitou ao movimento 'Fies sem teto' que organizasse uma planilha para localizar e identificar quais instituições não estão aplicando a portaria. O intuito do ministério é convocar as faculdades, conversar e reafirmar o compromisso que havia sido feito para aplicar os descontos.
Limite
Ao Correio, o Ministério da Educação afirmou, por meio da assessoria, que o teto do programa para cursos de medicina está fixado em R$ 60 mil por semestre e "essa definição busca equilibrar a ampliação do acesso ao ensino superior com a sustentabilidade financeira do fundo, evitando o superendividamento dos estudantes". A pasta também ressaltou que o Comitê Gestor do Fies (CG-Fies) está analisando uma possível revisão do teto de financiamento, especialmente para os cursos de medicina.
"A expectativa é que uma nova proposta seja avaliada ainda no primeiro bimestre deste ano, com o objetivo de alinhar o financiamento às necessidades dos estudantes sem comprometer a viabilidade do programa. Paralelamente, o MEC, por meio do FNDE, segue monitorando a evolução dos custos do ensino superior para considerar eventuais ajustes futuros", disse a pasta.
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