Entrevista | Cordula Droege | chefe da Divisão Jurídica do Comitê Internacional da Cruz Vermelha

'Direito humanitário está falhando sob nossos olhos', alerta Cruz Vermelha

Em visita a Brasília, dirigente reuniu-se com representantes da América Latina para discutir boas práticas internacionais e reforçou que, mesmo em casos de guerra, há regras e limites que não devem ser rompidos

Em um mundo com cada vez mais conflitos, a chefe da Divisão Jurídica do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Cordula Droege, alerta para o crescente desrespeito ao direito humanitário. Em entrevista ao Correio, ela explica que a legislação não foi criada para prevenir guerras, mas que diminuir o número de violações é um caminho para estimular a paz e diminuir o sofrimento causado pelos conflitos armados.

Droege aponta que, para isso, os países precisam apoiar politicamente e denunciar as violações cometidas principalmente pelos seus aliados, e não apenas apontar o dedo para os adversários.

A diretora do CICV esteve em Brasília na última semana para uma reunião com representantes de 18 países das Américas sobre o direito humanitário, boas práticas e o que a América Latina pode ensinar para outras regiões do mundo — já que é considerado um continente relativamente pacífico, sem confrontos armados entre Estados.

O encontro faz parte da Iniciativa Global lançada no fim do ano passado pela Cruz Vermelha em parceria com África do Sul, Brasil, Cazaquistão, China, França e Jordânia para ampliar o apoio ao DIH. Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Qual o cenário atual do direito internacional humanitário?

O direito internacional humanitário (DIH) está em uma encruzilhada, porque temos um grande número de conflitos. O CICV classifica 130 conflitos armados no mundo, afetando cerca de 60 países. Há mais de 100 grupos armados não estatais envolvidos. E há um aumento dos conflitos entre Estados. Não apenas guerras civis, como você vê na Síria, mas também conflitos armados que envolvem Estados, como entre Ucrânia e Rússia. Em todos eles, o que vemos é um desrespeito gritante de muitas das regras do DIH, regras básicas para manter a vida e dignidade humana. É uma tempestade perfeita para uma espiral de mais conflitos e violações.

E como a Iniciativa tenta mudar esse quadro?

Precisamos de compromisso político dos Estados, porque não há "policiais internacionais" para fazer valer essa lei. O respeito e a implementação do direito internacional depende completamente da vontade política, seja dos Estados e grupos envolvidos nos conflitos, mas também dos Estados que os apoiam, que fornecem armas, que dão apoio político e econômico. Todos têm uma obrigação, como está escrito nas Convenções de Genebra, de respeitar e garantir o respeito ao DIH. E todos assinaram as Convenções.

A América Latina é um continente considerado pacífico, apesar de ter seus cenários de violência. Como ela pode ajudar com o direito humanitário em outras regiões mais bélicas?

A América Latina é uma região especialmente interessante, porque ela se considera uma região de paz, e uma região que apoia e defende o direito internacional e o DIH especificamente. Mas não foi sempre uma região de paz. Muitos Estados da América Latina no passado sofreram com conflitos armados terríveis, como o Peru, Guatemala, El Salvador, etc. E eles têm lições a aprender desses conflitos, e sabem o preço desses conflitos, das violações. Eles sabem o que significa as pessoas "serem desaparecidas", por exemplo. Eles sabem o que significa para as famílias, e eu acho que aprenderam essas lições de forma muito dolorosa, e tentam superá-las. A América Latina é uma das regiões, senão a que mais ratifica tratados do DIH.

Em relação às crises humanitárias causadas por conflitos, como você vê a situação atual?

Sinto que o direito humanitário está falhando sob nossos olhos. Só para dar alguns exemplos, em Gaza havia 36 hospitais. Quase todos estão em ruínas. Não há medicamentos e insumos para os hospitais. A CICV tem um hospital de campo lá, onde já ocorreram vários incidentes com mortes. Atendemos homens, mulheres e crianças enquanto as balas atravessam nossas tendas. Não há espaço seguro mais para os civis em Gaza.

E não é só em Gaza…

No Sudão, você tem 12 milhões de pessoas deslocadas pelo conflito, nove milhões internamente e três milhões fora do conflito. Em Mianmar, você tem cerca de 20 milhões de pessoas que precisam de ajuda humanitária, e 15 milhões sem comida ou em situação de insegurança alimentar. Na Ucrânia, você tem ataques à infraestrutura de água e energia, os hospitais estão em uma situação muito severa. Os danos ao solo e ao meio ambiente por causa dos drones e armas usadas lá durarão por décadas. E eu nem falei da Síria, do Sudão do Sul e da Colômbia, que está aqui do lado e vive uma situação que está deteriorando para a população civil. Então, temos essa espiral e precisamos sair dela, porque realmente está saindo do controle.

Como fortalecer o DIH ajuda a reduzir conflitos e guerras?

Precisamos encontrar uma forma de sair desses conflitos, e uma forma modesta é reduzir as violações que acontecem. O DIH não é uma legislação para prevenir a guerra, não é sua função. É para reduzir o sofrimento na guerra. Mas, ao fazer isso, podemos criar caminhos para a paz.

O Brasil adota uma posição de envolvimento ativo nos mecanismos internacionais, como a ONU, e defende o direito internacional. Qual a importância dessa a atuação?

De fato, o Brasil promove e defende o DIH no cenário internacional, mas também domesticamente. Ele ratificou, eu acho, 26 tratados e trabalhamos de forma muito próxima com o Brasil para a sua implementação. De alguma forma, todos os Estados têm um papel a cumprir, e é muito importante que a gente não ouça apenas as grandes potências militares, ou os países mais ricos, os envolvidos em conflitos armados. O Brasil e outros países que convidamos para essa iniciativa entenderam muito rápido que essa união em defesa do DIH é muito importante.

Na prática, como deve ser a defesa do DIH entre Estados?

É muito fácil que os países denunciem os seus inimigos, mas eles não têm nenhuma influência, porque são adversários. O que é muito mais difícil é influenciar seus próprios aliados. Uma das visões da CICV é que os Estados devem passar mais tempo convencendo seus aliados do que criticando os inimigos. É preciso coragem para falar com seus aliados de forma clara e franca, e dizer: "Eu apoio você nesse conflito, mas você tem que respeitar o DIH". É inaceitável ter guerra a qualquer custo.

Isso parece bem distante do que temos…

O que vemos hoje é uma situação de dois pesos e duas medidas: criticar um adversário, mas ficar em silêncio quando um aliado faz a mesma coisa. Isso destrói a credibilidade do DIH. Uma criança em Gaza tem exatamente o mesmo valor que uma criança no Sudão do Sul, em Mianmar ou na Ucrânia, e isso é algo que os Estados devem cumprir. É muito básico.

Como pensar no futuro do direito humanitário se nem o básico consolidamos ainda?

É difícil, mas é o que temos que fazer. Você precisa voltar e tratar sobre a proibição da tortura, violência sexual, porque essas coisas ainda acontecem e precisam ser combatidas. Também precisamos pressionar por alguns tratados. Por exemplo, alguns países deixaram a Convenção de Ottawa que proíbe o uso de minas terrestres antipessoais, o que é muito, muito perigoso. Então temos que lutar contra essa regressão na lei internacional, mas, ao mesmo tempo, propor uma visão contemporânea. Temos que trabalhar para entender e antecipar os possíveis impactos humanitários das novas tecnologias.

Nesse sentido, quais são as perguntas que devemos fazer?

O que pode ocorrer se armas autônomas forem usadas? O que pode ou já ocorreu quando operações cibernéticas são usadas em conflitos armados? Quais serão os efeitos em civis se a inteligência artificial for usada na tomada de decisões militares? O que o CICV faz é olhar para o custo humano dessas novas tecnologias. E, hoje em dia, muitos países — como o Brasil — pedem uma regulação do uso de armas autônomas. Estamos defendendo um acordo sobre isso até 2026, e trabalhando duro com alguns dos Estados que também têm esse posicionamento.

Para o brasileiro, que felizmente está distante de guerras: qual a importância de atuar para o respeito ao direito humanitário?

É uma região de sorte por estar em paz. Mas vocês têm um país vizinho, que é a Colômbia, que está vivendo um conflito armado com um custo muito, muito alto para a população civil. O DIH tem que ser respeitado porque você pode estar em paz agora, mas não sabe quanto tempo isso vai durar. Um dia (a guerra) pode vir para você também. E você vai querer estar preparado, vai querer que seu povo saiba a legislação internacional, que tome precauções, marque propriedades culturais, por exemplo. E também vai querer que suas Forças Armadas respeitem a lei. É também uma obrigação moral com a humanidade.

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