EXPLORAÇÃO MINERAL

O novo conflito do ouro em Minas Gerais

Em Paracatu, noroeste mineiro, remanescentes de quilombo denunciam ter sido privados de mais da metade do território de seus ancestrais pela mineradora Kinross, de quem cobram R$ 1 bilhão em duas ações civis públicas

Vista da Mina Morro do Ouro, da mineradora canadense Kinross em Paracatu, Minas Gerais: barragem gigante -  (crédito: Escritório de Advocacia Barreto Dolabella/Divulgação)
Vista da Mina Morro do Ouro, da mineradora canadense Kinross em Paracatu, Minas Gerais: barragem gigante - (crédito: Escritório de Advocacia Barreto Dolabella/Divulgação)

Uma área de práticas e histórias ancestrais, onde gerações de escravizados encontraram refúgio para escapar da servidão e sobreviver à crueldade, atualmente, tem mais da metade de seu terreno (52,3%) ocupada por estruturas de mineração de ouro, incluindo uma das maiores barragens de rejeitos do mundo, a Eustáquio. Sobre área que foi do antigo Quilombo do Machadinho, em Paracatu, no noroeste de Minas Gerais, a 500 quilômetros de Belo Horizonte, estão represados nada menos do que 506,4 milhões de metros cúbicos (m³) de rejeitos com tratamentos químicos, provenientes da Mina Morro do Ouro, explorada pela mineradora canadense Kinross.

Para que se tenha uma dimensão do tamanho dessa represa, basta dizer que o volume de rejeitos que ela abriga é 10,3 vezes maior do que os 49 milhões de m³ liberados pelo rompimento das barragens do Fundão (Mariana MG) e da Mina Córrego do Feijão (Brumadinho-MG), juntas. Expulsos pela mineração da multinacional, os quilombolas se foram e reclamam direitos na Justiça Federal por meio de duas ações civis públicas (ACPs) com valor indenizatório de R$ 1 bilhão, iniciadas em agosto de 2025. Nelas, afirmam não ter recebido pela exploração da própria terra, além de sofrerem com os impactos da mineração de ouro.

O remanescente de quilombo afetado pela Kinross foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares em 2004, mas até agora não foi titulado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). De acordo com as famílias, posseiros e sitiantes ocuparam as terras do quilombo e as venderam para a gigante multinacional. A empresa nega irregularidades em sua atuação.

O fato é que grande parte da terra reclamada pelos descendentes de povos ancestrais agora abriga a exploração mineral, em uma atividade que, de acordo com a Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam), é de alto impacto ambiental. A própria fundação identificou contaminação por arsênio em águas subterrâneas naquelas terras e interveio. O arsênio é um metaloide usado na exploração do ouro, e é considerado extremamente tóxico para o homem e os ecossistemas.

De dentro da terra quilombola partem vários mananciais diretamente ligados ao Rio Paracatu. Segundo o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), fluem contaminados em alto nível por metais pesados. O Rio Paracatu, ao lado do Rio das Velhas, são os maiores afluentes do Rio São Francisco.

O Quilombo do Machadinho ainda reserva corredores de Cerrado e de Mata Atlântica em quase 50% da sua totalidade livre de mineração, comportando espécies vegetais vulneráveis e 13 grandes mamíferos ameaçados de extinção. "Muitas pessoas viviam lá dentro do território dos nossos antepassados. Plantavam, viviam da agricultura. Faziam rapadura, farinha, tinha os raizeiros... Iam até a cidade de carroça para fazer as vendas na feira de Paracatu", conta o presidente da Associação Quilombo do Machadinho (Aquima), Claudinês Lopes.

"Até que chegou a Kinross. Conseguiram comprar algumas fazendas ao lado do quilombo. Começamos a nos sentir encurralados, porque eles faziam pesquisa, as estradas foram destruídas, os garimpeiros foram proibidos de minerar de forma violenta. Perdemos o direito de ir e vir. Até os rios que a gente usava para beber foram perdidos", relata Lopes.

De acordo com as duas ACPs que tramitam na Justiça Federal, a indenização pretendida pelos quilombolas e moradores dos bairros Alto da Colina e Bela Vista II — muitos deles também quilombolas que deixaram a terra reconhecida — visa "suprimir violações socioambientais, culturais, espirituais e territoriais, além de graves violações aos direitos humanos".

"Os quilombolas nunca receberam um percentual pela exploração do ouro nas terras que são reconhecidas como deles. Além desse percentual, cobramos uma reparação pelos impactos à saúde e psicológicos que eles sofrem. Pedimos também uma liminar para barrar o avanço da mineração e estabelecer o seguro ambiental minerário - uma remuneração provisória de um salário", afirma o advogado Guilherme Dolabella, do escritório Barreto/Dolabella, que representa as comunidades e suas associações nas ações.

Apenas entre os relacionados ao quilombo, há cerca de 1.800 pessoas atingidas e que são representadas pela Associação dos Quilombolas do Machadinho (Aquima). Nos dois bairros afetados de Paracatu, a ação corre em nome da associação dos moradores, que reúne um número ainda não contabilizado de atingidos.

Perigo para a saúde

Para fundamentar os danos à saúde que a ação indica serem provocados pela mineração, os advogados recorreram a um estudo científico apresentado no 3º Congresso da Sociedade de Análise de Risco Latino-Americano, que revelou índice médio de arsênio de 14,7 micro grama por litro (µg/L) na urina de moradores de Paracatu, com picos de 32,5 µg/L.

Para se ter uma ideia, a água, quando atinge um nível de concentração de arsênio acima de 10µg/L, ultrapassa a tolerância para ser considerada potável, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Estudos laboratoriais do Laboratório de Ensino de Biotecnologia (Labiotec) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Centro de Tecnologia Mineral (Cetem) e peritos do Ministério Público Federal (MPF) indicam na ação civil pública dos atingidos a presença de arsênio e metais pesados em solo e cursos d'água, assim como na urina da população de Paracatu.

"A ingestão ou a inalação do arsênio pode levar a disfunções cardiovasculares, desordens neurológicas, diabetes, desordens hematológicas, câncer em diferentes órgãos (fígado, pele e rins) e arterosclerose", segundo o Cetem.

O Instituto Nacional de Câncer (Inca) alerta que a exposição a metais pesados pode induzir a "danos genéticos, causar quadros de intoxicação aguda ou crônica e outras doenças, como diabetes, aterosclerose, doenças neurológicas ou cardiovasculares e, inclusive, câncer".

Explosões, sirenes, água envenenada e revolta

Uma vida de medo constante é exposta na Ação Civil Pública movida contra a mineradora Kinross pelos quilombolas e moradores dos bairros Alto da Colina e Bela Vista II, em Paracatu, no Noroeste de Minas. O temor se refere, sobretudo, ao estado de segurança e possível risco de rompimento da Barragem Eustáquio, da companhia de exploração de ouro. As comunidades destacam que a situação se deve ao fato de já terem sido encontradas fissuras e trincas que acabaram sendo reparadas na estrutura. Mas também pela lembrança do desespero devido ao acionamento em falso das sirenes de evacuação, em 2021.

As explosões constantes na mina afetam estruturas de casas e construções, provocando trincas e rachaduras, segundo relatos de moradores. Mas abalam também seu estado psicológico, uma vez que ocorrem diariamente, especificamente às 15h30, sendo apelidadas de "bomba das 15h30".

"A mineradora teria de tirar a população e realocá-la em casas pagas por eles, mas nada disso foi feito. O dano psicológico e a angústia são muito evidentes. Muitos reclamam da intimidação dos seguranças da empresa, que não permitem que criem gado nas suas terras, fecham acessos, estradas e perseguem com truculência as pessoas. Quando estivemos lá, fomos acompanhados por carros suspeitos. Neste dia, não ocorreu a explosão", afirma o advogado Guilherme Dolabella, do escritório Barreto/Dolabella, que representa moradores e suas associações nas ações movidas contra a companhia.

"Primeiro veio a revolta de ver essa barragem cheia de veneno em mais da metade do território que era dos nossos avós. Minha avó chorava sempre. A gente viu perder a cultura, as tradições. Lá tinha festa de folia, festa de São João, cavalgada...", relata Claudinês Lopes, presidente da Associação dos Quilombolas do Machadinho (Aquima). "Além disso, tem a situação péssima de vida nos bairros para onde muitas pessoas foram. No Alto da Colina, que é o bairro mais próximo de lá, eles colocaram um muro, mas, mesmo assim, os impactos, rachaduras, a poeira...Tudo é um pesadelo", considera Lopes.

A Barragem Eustáquio é formada por dois diques selantes e começou a operar em 4 de janeiro de 2010, após o reconhecimento do território quilombola. Os rejeitos passam por trituração, separação por gravidade, peneiramento e processos químicos. A represa de rejeitos ocupa mil hectares (ha), dos 1.152 ha de área com estruturas minerárias dentro dos 2.200 ha de terreno quilombola.

Um dos pontos ao centro da Barragem Eustáquio foi considerado pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) de alta vulnerabilidade natural à contaminação de aquíferos, ou seja, pontos em que a água subterrânea está mais sujeita a ser poluída. O restante da área foi considerado de média de vulnerabilidade.

A 230 metros da barragem, próximo ao Córrego Rapadura, a Feam identificou áreas contaminadas que constam como estando sob intervenção por "descarte e deposição de resíduos" provocando "contaminação das águas subterrâneas por arsênio". No Quilombo do Machadinho há vários mananciais sob influência da mineração. Um dos córregos da porção Sul, por exemplo, percorre 2 quilômetros dentro da área delimitada para o quilombo e a deixa, seguindo mais um quilômetro e meio até chegar ao Córrego Espalha.

O Espalha é um dos principais afluentes do alto Córrego Rico, manancial que também vem de dentro da mineração, margeando o bairro atingido Bela Vista II. O curso d'água atravessa o centro urbano de Paracatu, áreas rurais e de matas, em uma viagem de 86 quilômetros ao longo da qual recebe diretamente 21 contribuições significativas e deságua diretamente no Rio Paracatu.

Na parte Norte do território quilombola, o Córrego do Eustáquio forma a barragem de mesmo nome, recebendo duas contribuições principais, de um manancial dentro da área em demarcação e de outro que vem da mineração, formado na Barragem Tanque Específico XII de rejeitos classe 1 (perigosos) e alto potencial de dano ambiental.

Depois de deixar a barragem, o córrego segue por 2 quilômetros até desembocar no Ribeirão Santa Rita. Ali, antes do povoado de Lagoa e da confluência com o Ribeirão São Pedro, a taxa de contaminação por metais pesados medida entre 2021 e 2023 pela Feam é considerada média.

Esse manancial segue por 25 quilômetros até a confluência com o Ribeirão São Pedro, de lá por mais 74 quilômetros até o Ribeirão Entre Ribeiros que deságua no Rio Paracatu 67 quilômetros depois.

Conflitos hídricos

Praticamente 85% do território quilombola se encontra em área considerada de conflito por uso de recursos hídricos superficiais (córregos e ribeirões) das sub-bacias do Ribeirão São Pedro e Ribeirão Santa Rita. O comprometimento da disponibilidade de águas subterrâneas superou a capacidade. Por esse motivo, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) não permite novas captações, sendo a área considerada de restrição e controle de águas subterrâneas.

Árvores também na lista de extinção ainda ocorrem no Quilombo do Machadinho. Entre elas, o baruzeiro (Dipteryx alata), nativo do Cerrado e ameaçado na categoria vulnerável segundo a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), devido à extração predatória de madeira e a perda dos habitats. 

 


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MP
postado em 28/09/2025 04:25
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