violência

Quando pedalar se torna um risco de vida no Distrito Federal

Além de problemas no trânsito, ciclistas da capital do país lidam com crimes enquanto conduzem as bikes. Soluções envolvem segurança pública, educação e infraestrutura

Ana Isabel Mansur
postado em 31/05/2022 06:00 / atualizado em 31/05/2022 07:46
Homenagem às vítimas: bikes brancas simbolizam a tragédia no trânsito em vários pontos da cidade -  (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press)
Homenagem às vítimas: bikes brancas simbolizam a tragédia no trânsito em vários pontos da cidade - (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press)

A insegurança acompanha o trajeto dos ciclistas do Distrito Federal. Não bastassem os riscos no trânsito, os condutores estão sujeitos a crimes com abordagem violenta. Somente em 2022, segundo o Departamento de Trânsito (Detran), ao menos oito ciclistas perderam a vida nas vias do DF em decorrência de imprudência ao volante (7) e ações criminosas (1). Levantamento do Correio aponta que, apenas em maio, três condutores de bicicleta morreram. A vítima mais recente, Claudemar Moura dos Santos, 47 anos, foi encontrada morta próximo a uma ciclovia, no Setor de Mansões do Park Way (SMPW), na tarde de sábado (28/5). Claudemar apresentava marcas de violência no rosto, e a principal linha de investigação, conduzida pela 11ª Delegacia de Polícia (Núcleo Bandeirante), é de latrocínio — roubo seguido de morte. A bicicleta e o celular da vítima foram levados. Até o fechamento desta edição, a Polícia Civil do DF não tinha atualizações nem a dinâmica da ocorrência.

Amiga de longa data de Claudemar, Kerlla Luz está em choque. "É difícil aceitar a partida de pessoas tão divertidas como ele. A gente olha como se a nossa própria vida tivesse sido interrompida", lamenta. "Sabemos da luta de vida que ele traçou e venceu por conta própria. Que Deus o receba", homenageia Kerlla, que estudou processamento de dados com Claudemar entre 1996 e 1999, na Universidade Estadual do Tocantins (Unitins). Flamenguista, o ciclista também era engenheiro civil e técnico em edificações. Ele atuava como analista de tecnologia da informação no Banco do Brasil. Natural do município de Porto Franco (MA), a vítima foi sepultada na tarde de segunda-feira (30/5), no povoado de Coité (MA), onde nasceu. Morador de Arniqueira, Claudemar deixa esposa, um filho e um neto.

  • Claudemar foi encontrado morto em uma ciclovia do Park Way Arquivo pessoal
  • Robert Rocha procura locais movimentados para pedalar Arquivo pessoal
  • Homenagem às vítimas: bikes brancas simbolizam a tragédia no trânsito em vários pontos da cidade Carlos Vieira/CB/D.A Press

Infraestrutura

O caso ocorreu em uma ciclovia, na altura da Quadra 3, Conjunto 5 do SMPW. O militar Robert Rocha, 55, pedala frequentemente no local. "Nunca passei de noite (pela ciclovia onde Claudemar foi encontrado morto), então não sei dizer sobre iluminação", relata o morador de Valparaíso (GO). O corpo da vítima de sábado foi localizado pelo Corpo de Bombeiros Militar do DF (CBMDF) por volta das 17h45. "Não vemos muito movimento no local, só ciclistas, mesmo. Quase ninguém passeia por lá, é bem isolado. Polícia, por ali, raramente vejo. Não sei se é pelo horário", completa Robert.

"Medo sempre tenho. Bicicleta é um equipamento caro. A minha custou R$ 5 mil, mas algumas podem chegar a R$ 100 mil. Sozinhos, somos alvos fáceis. Tento procurar vias marginais e ciclovias, mas não tem muitas aqui no DF. Por serem locais movimentados, passam mais segurança", pondera o ciclista. A Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) informou ao Correio que o DF tem 633,496km de malha cicloviária, a segunda maior do país, de acordo com a pasta. Há processo de licitação aberto para construção de mais 105km e previsão de construção de ciclovias na Asa Sul, Asa Norte, Lago Norte, São Sebastião, Taguatinga, Brazlândia e Sobradinho. 

Mesmo com condições desfavoráveis, Robert se considera sortudo por nunca ter sido vítima de violência, nem no trânsito nem em abordagens criminosas. No entanto, o ciclista vivenciou de perto episódios de insegurança. "Uma vez um carro tirou um 'fino' de mim e por pouco não me atropelou. O motorista nem olhou, apenas foi embora. Eu estava na marginal, indo do Gama para o Setor Militar Urbano", conta Robert.

Há seis meses, a então esposa dele teve a bicicleta roubada durante um assalto, em plena luz do dia, enquanto pedalava com uma amiga, no calçadão do Gama — local de intenso movimento. "A gente se sente impotente, porque não pode fazer nada. (O assaltante) apontou o revólver para elas, eram 7h da manhã", destaca o militar. "Precisamos de mais ciclovias, iluminação e policiamento, com abordagens frequentes para verificar se a bicicleta é mesmo da pessoa", pede o militar. O episódio de violência no Park Way não foi isolado.  

Ana Júlia Pinheiro, da ONG Rodas da Paz, pede melhorias na infraestrutura para diminuir os resultados trágicos. "É preciso instalar equipamentos que dificultem os furtos, como travas de qualidade e câmeras de segurança, nos locais mais comuns dessas ocorrências. A ciclovia do SMPW (onde Claudemar foi morto) não tem iluminação. Os ciclistas se encontram em duplo risco, de atropelamento e assalto", denuncia. Ela aconselha as vítimas a registrarem os crimes, para direcionar os trabalhos da polícia para as regiões com maiores ocorrências. "É preciso fazer um trabalho de inteligência para identificar quem vende e quem compra estas bicicletas", completa Ana Júlia.   

Incidência

 O crime ocorreu em Santa Maria, e a vítima foi levada em estado grave para o hospital. Há 10 dias, um ciclista foi esfaqueado e teve a bicicleta roubada durante um assalto. Júlio César Silva dos Santos, 44, também viveu na pele os riscos de pedalar pelas vias do DF. Em plena luz do dia, percorrendo uma ciclovia e em local movimentado, ele foi abordado por dois homens, que levaram a bicicleta do morador de Taguatinga. "Foi na ciclovia da QNN 10, Ceilândia Sul, por volta das 17h15. Estava voltando do trabalho. Felizmente, levaram só a bicicleta", relembra o soldador.

O equipamento roubado era para a prática de mountain bike, e o prejuízo de Júlio foi de R$ 3 mil. Integrante do grupo Confraria do Pedal, que percorre as ruas da capital duas vezes por semana, de noite, o ciclista foi presenteado pelos companheiros com uma bicicleta nova. Porém, por segurança, ele usa uma bike antiga para ir ao trabalho todos os dias. "Ainda ando na mesma ciclovia, mas com medo. Mesmo assim, é melhor ir de bicicleta para o trabalho. Se eu for de ônibus, chegou muito atrasado", compara Júlio, que faz parte do grupo de pedal, justamente, por uma questão de segurança. A iniciativa chega a reunir cerca de 40 participantes, que saem de um supermercado na M Norte para destinos de Taguatinga e do Plano Piloto. Procurada pelo Correio, a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) informou que realiza ações, com patrulhamento, em todo o DF para reduzir os crimes violentos contra a vida e o patrimônio. "A PMDF ressalta que os crimes mais recorrentes praticados contra ciclistas são os furtos", observa a corporação, em nota.

Trânsito

A professora Michelle Andrade, coordenadora do programa de pós-graduação em transportes do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), destaca que o nível de risco para os ciclistas no DF não é uniforme, porque a infraestrutura de transporte no território, em termos de planejamento, estrutura e manutenção, é extremamente diversa. "Assim como ocorrem em outras cidades, os investimentos acontecem primeiro nas regiões mais ricas. Ceilândia é a primeira em termos de população do DF e a quinta em extensão, com cerca de 6% da malha cicloviária do DF. O Plano Piloto tem 131,72km, ou seja, 20,8% desse tecido do DF. Ou seja, onde a ciclovia é mais necessária, ela ainda está ausente", critica a especialista.

A professora destaca que o cálculo para definir a extensão da malha cicloviária necessária para determinada cidade deve considerar o total da população da região — não a quantidade de ciclistas. "A criação fomenta o uso das bicicletas, o que traz mais saúde para a população e para a cidade. Apesar de sermos uma das cidades com a maior malha cicloviária do país, a quantidade é ainda muito pequena, e não alcança os níveis previstos para uma cidade com boa mobilidade ativa", observa Michelle Andrade. Para a pesquisadora, a ausência de infraestrutura dedicada ao ciclistas expõe esses usuários a acidentes graves. "Sobretudo porque o Distrito Federal é permeado de rodovias, em contexto urbano, operadas com velocidades elevadas (entre 60 e 80 km/h). Além disso, é possível observar que ainda há problemas nas conexões dos trechos cicloviários disponíveis na capital federal, o que incrementa o risco na interação do ciclista com o fluxo veicular", constata a especialista. 

Ao Correio, o Detran listou as ações voltadas para a redução das mortes de ciclistas no trânsito e citou atividades educativas feitas nas escolas da capital do país. "Temos os projetos Bike em Dia e Bike em Dia na Madrugada, em que os educadores de trânsito do Detran vão para as ciclovias, nos horários de maior fluxo. Os ciclistas são abordados e são passadas orientações e esclarecimentos de condutas de segurança e preservação da vida. Além disso, são entregues materiais educativos e acessórios reflexivos", informa, em nota, o órgão, que também realiza circuito de Passeios Ciclísticos nas Regiões Administrativas do DF, a fim de "chamar a atenção da sociedade para a importância do respeito ao ciclista e para o compartilhamento das vias."

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Problema conjuntural

"A realidade dos ciclistas do DF é uma questão de segurança pública, mas não envolve apenas um fator. Há camadas sociais envolvidas, que exigem atuação com polícia ostensiva e judiciária. A sensação de segurança à população é transmitida, também, pelos agentes na rua. É preciso melhorar o policiamento de ronda, inclusive com atuação de agentes do Detran e do DER (Departamento de Estradas de Rodagem), não apenas de forças policiais. Normalmente, o ciclista sai com, no mínimo, dois objetos que chamam a atenção, são fáceis de serem extirpados e podem ser facilmente comercializados em mercados alternativos. São alvos fáceis, principalmente quando saem sozinhos ou em número reduzido. A ciclovia, apesar de ser imprescindível, por si só, não resolve o problema. Muitos circulam em parques, trilhas e locais ermos. O Estado não pode privar a população de frequentar certos lugares porque não consegue proporcionar segurança. É necessário que o poder público oportunize atividades, cuide dos locais e permita que sejam de fácil acesso, com segurança, iluminação, acessibilidade e postos policiais próximos. O ciclista tem o direito de usar a bicicleta como meio de locomoção e lazer, mas tem o dever de atentar para a própria segurança, porque é a parte mais frágil da situação."

Águimon Rocha, professor de Direito Penal da Universidade Católica de Brasília

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação