Crônica

Artigo: A morte sempre anunciada

Foi Bernardo Sayão quem comandou a abertura das rodovias de acesso a Brasília e as primeiras vias de trânsito dentro da cidade em construção

Artigo: A morte sempre anunciada -  (crédito: CB)
Artigo: A morte sempre anunciada - (crédito: CB)

Por Sérgio de Sá — Bernardo Sayão Carvalho Araujo estava antes do começo. Chegou a Goiás em 1941. Vinha do Rio de Janeiro com a missão dada por Getúlio Vargas de trazer o Brasil para dentro de si mesmo. Administrou a criação de uma colônia agrícola, pioneira experiência de reforma agrária. Foi, assim, um carioca desapegado das praias e das pedras.

Sempre animado, também não ficou de cara emburrada quando Juscelino Kubitschek, tempos depois, ao encarar a mudança da capital, quis que ele estivesse à frente das obras por aqui. Compreendeu o momento como o vento que sopra do litoral para ir longe, ainda que por estradas ainda muito precárias.

Foi Bernardo Sayão quem comandou a abertura das rodovias de acesso a Brasília e as primeiras vias de trânsito dentro da cidade em construção, entre outros feitos estruturais realizados como diretor da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, a Novacap.

Era um líder que largava as pastinhas da burocracia para acordar cedo e se misturar aos trabalhadores no grande canteiro em meio ao cerrado. Teve também o desprazer de ser o morto inaugural do cemitério Campo da Esperança, enterrado em 17 janeiro de 1959.

Sayão é meu avô real e imaginário. O sobrenome marcante me faz falta como atestado direto de uma linhagem materna e memorável. Mas me sobra como narrativa necessária para tentar convencer o leitor de que esse homem superlativo merece ter sua história contada e recontada.

 

Nas 260 páginas do livro Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades, interligando capítulos-cenas colados em velhas e novas histórias, busquei trazer de volta ao presente essa personagem notável para a existência da cidade na qual nascemos e vivemos.

Agrônomo de formação superior, Sayão se converteu em engenheiro (quase) civil por desejo pragmático de ver surgir a outra ponta da viagem ao fim da estrada, com alguma provável impaciência para o tempo do progresso da natureza. Isto é: mais rasgar, atravessar e erguer, a fim de escoar o que se plantou, germinou e colheu.

Nas linhas retas e enviesadas das picadas, Sayão escolheu a humanidade dos que cruzaram seu caminho. Não à toa, deixou legado de confiança e lealdade, nomeado a partir de uma força desmedida para o trabalho em campo. Depoimentos orais e escritos sobre ele mostram esse afeto sincero.

Escritores, como o norte-americano John dos Passos e os brasileiríssimos Antonio Callado, Ana Miranda, Bernardo Élis e Rachel de Queiroz, perceberam essa vocação para o bem comum embalada por uma intimidade que vinha do sorriso largo, do peito aberto, da elegância natural, do gesto generoso.

JK, que não era bobo nem nada, colocou Bernardo Sayão em diálogo permanente, desengravatado, com os homens responsáveis por tirar da terra um modernismo de árvores tortas. O presidente da República também designou Sayão para abrir a estrada Belém-Brasília, destino final, sonho antigo do desbravador pioneiro.

Os dois sabiam de nada adiantar uma capital voltada apenas para o litoral. Antes de JK, Sayão já queria erguer a viga Brasil acima. Morreu vítima da própria vontade de desenvolvimento, da coragem de estar em plena floresta, sem bons equipamentos, sem hospital por perto, com quase nada a curta distância. Um galho amazônico lhe ceifou a vida.

O velório e o enterro de Bernardo Sayão paralisaram a gestação de Brasília por dois dias, cumprindo vontade popular. Os candangos cruzaram os braços. Foi o primeiro grande drama épico da construção, emaranhado de interrogações, envolto em fitas pretas, lágrimas, incredulidade. Como assim? Morreu? Onde? Por quê?

Bernardo Sayão constitui essas hipérboles do neto que não o conheceu em vida, mas com ele conviveu no retrato perfilado em sua sala de estar. Como disse em outra ocasião, meu avô é faroeste privado, filme de conquista do Oeste visto de um cavalo alado que enfrenta a realidade ano a ano, em seca e chuva, suor e suspiro.

Neste 21 de abril, comemorar o aniversário de Brasília é necessariamente sobrelevar a história deste bravo de vida breve, que não presenciou a inauguração. Se há o espanto estético do arquiteto e a linha moral do urbanista, é porque houve quem ousasse colocar botinas sobre pó ou lama, de calça cáqui e camisa de brim. E a bússola do progresso a tiracolo.

*Jornalista e professor na Universidade de Brasília, o brasiliense Sérgio de Sá (sergiodesa50@gmail.com) é autor de Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades (Edição do Autor), à venda nas livrarias Circulares (113 Norte) e Oto (302 Norte)


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postado em 21/04/2024 06:00
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