Obituário

O adeus a Vicente Sá, o poeta e "filósofo" da Asa Norte

Vicente Sá tinha uma legião de admiradores por sua poesia que, desde os anos 1970, retratava o cotidiano da cidade. O escritor, que veio do Maranhão menino, morreu devido a uma pneumonia e será hoje homenageado no Espaço Cultural Renato Russo, na 508 sul, por amigos, leitores e familiares

2021. Crédito: Diego Bresani/Divulgação. Cultura. O escritor, jornalista e poeta brasiliense Vicente Sá. -  (crédito: Fotos: DiegoBresani/Divulgação)
2021. Crédito: Diego Bresani/Divulgação. Cultura. O escritor, jornalista e poeta brasiliense Vicente Sá. - (crédito: Fotos: DiegoBresani/Divulgação)

Em minutos brotava a impressionante poesia de Vicente Sá, às vezes compartilhada entre os mais íntimos, de modo cochichado dentro do ouvido, numa mesa de bar. Informal e agregador, além de uma unanimidade sábia e simples, o poeta que veio, menino, do Maranhão para Brasília, morreu na última sexta-feira, aos 67 anos, e será cremado neste domingo (26/1), mas não antes de uma despedida no espaço Cultural Renato Russo (508 Sul), entre às 10h e às 13h.

"Vicente nasceu um poeta precoce. Em criança, fazia piadinha com os adultos em forma de verso. Com ele, tudo virava poesia", conta a viúva, a produtora cultural Lúcia Leão. Vicente deixa ainda os filhos Gabriel e Tauana, além de oito netos e uma bisneta. A causa da morte do maranhense, natural de Pedreiras, foi uma pneumonia, que afetou ainda mais o quadro de um câncer de garganta.

Uma pessoa espetacular, como descrito por Lúcia, Vicente figurou entre os mais importantes da poesia marginal de Brasília, tendo publicado livros de poesia, romances e crônicas (entre os quais Diário de Ánis, O engenho da loucura, Anjo carmim e Crônicas S/A), além de redigir centenas de crônicas e gerar incontáveis músicas, muitas das quais criadas no espaço cultural Leão da Serra (Taquari), palco de memoráveis encontros artísticos. "Vicente era um artista de enorme grandeza, sem manifestação nenhuma de ego inflado. Ele era o melhor amigo de todos os amigos, aliás todo mundo que era amigo dele, o considerava 'o melhor amigo'", demarca Lúcia.

"Vicente gostava de ser lembrado como o poeta da Asa Norte. Ele sempre cantou muito Brasília. Ele tinha muitos personagens, pelo ofício de cronista. Ele era um sonhador, literalmente, sonhava com as coisas e sonhava com as pessoas", comenta Lúcia, que lembra da singularidade do primeiro encontro entre ambos, que passaram a madrugada num bar, repassando, um ao outro, dezenas de sambas da linha mais tradicional. Como ela reitera, o dia a dia de Vicente era a poesia; isso numa forma muito natural e espontânea.

Cooperativa

Nome potente para a poesia local, Noélia Ribeiro lembra com generosidade do amigo feito nos anos de 1970, quando fundaram, ao lado de colegas, a Cooperativa de Compositores e Poetas (CCOPO), em Brasília. "Naquela época, Vicente já demonstrava ser um letrista e poeta genial, um arquiteto das palavras, com raro senso de humor e agudeza de raciocínio. Sem suas crônicas semanais, a Asa Norte perde o rumo. Sem sua presença, ficamos mais tristes, menos poéticos", avalia Noélia.

Autor de livros como Beijo de hiena e A teus pilotis, e ainda impulsionado pelos livrinhos da geração do mimeógrafo Nicolas Behr engrossa o extenso fã-clube de Vicente Sá. "Meu primeiro contato com ele foi em 1977. Eu usei lá uma máquina de escrever especial dele para datilografar. Ele era companheiro de saraus. A importância dele está também em ser da primeira geração de artistas que assumiu Brasília como a sua cidade. Vestimos a camisa, e usamos a cidade como objeto para criação. O processo de humanização da maquete (Brasília) é infinito, pela arte. Personagens do Vicente como o Filósofo da Asa Norte explicitam o flâneur que Vicente foi: o cara que curte a cidade, e usa a cidade como personagem, não apenas a toma por cenário. Ele criou tipos populares e, nisso, tornou a capital mais orgânica, menos artificial", explicou o grande admirador.

Da trupe que circulou com Vicente Sá, nos idos dos anos de 1980, o cantor e compositor Renato Matos frequentava o que chamava de Nave Mãe (ao final da Asa Sul), num período em que Vicente estreitava composições com parceiros como Sérgio Duboc (um dos fundadores do Liga Tripa). "Vicente é muito profundo. Traz uma onda fantástica, filosófica e muito pessoal — é um trabalho muito forte. Tudo, tudo que produziu foi sempre muito bom. O Filósofo da Asa Norte, um dos personagens, era na verdade ele mesmo: se negava a dirigir, seguia andando de carro ou mesmo caminhando. Vicente era um cara super original. Eles se inspirava, andando, por isso tinha a autoria de crônicas excepcionais", explica Renato Matos.

Um dos primeiros amigos feitos na década de 1970, Vicente marcou demais a vida do editor de publicações artesanais José Sóter, emblemático para a chamada geração mimeógrafo. À época, Vicente já era compositor e perambulava pelos bares com o livro Tua mãe (como propaganda, perguntava ao cliente mais relutante: "Não vai levar a Tua mãe?!). "Criamos lá no (colégio) Setor Leste, grupo com espaço para poesia. Vicente veio com todo o gás maranhense, na construção da identidade cultural de Brasília, que era adolescente, com suas páginas todas em branco. Nós tínhamos disposição e fôlego. Na produção dele, por exemplo, O Homem do (apartamento) 301, que falava da estranheza de um homem dado como louco; há uma bela crônica que revela a festa dos animais na natureza e até falando de fome, Vicente extraía poesia. Agora, a simpatia e a forma de agregar as pessoas me parecem dos maiores patrimônios do Vicente. Por isso, houve comoção em torno de ajudas para a questão da saúde dele, no ano passado, com saraus, shows e movimentações beneficentes", pontua José Sóter, que casa com as declarações da viúva Lúcia: "Fomos muito, muito, muito felizes, ele sempre muito amoroso e muito intenso".

Uma das inciativas citadas, o Bazar Vicente São reuniu dezenas de artistas, no Beirute (eixo para comunidade de artistas), em maio de 2024, tendo sido tema da crônica De repente, 70 (no Correio) de Luís Jorge Natal, com destaque para um trecho: "O (grupo) Liga Tripa cuidou da trilha sonora de toda uma época. E o motivo não podia ser mais lúdico: homenagear o poeta e escritor Vicente Sá. Um maranhense que aqui sentou praça ainda criança e cresceu junto com a cidade". Um dos momentos marcantes na carreira de Vicente Sá esteve no lançamento, em agosto de 2023, da antologia Dos 70 aos 70 obra integrada ainda por textos de colegas como Angélica Torres Lima, Francisco K, José Carlos Vieira e Luiz Martins da Silva.

Músicas

Num contraponto, o músico e poeta Gadelha Neto e o músico Túlio Borges conviveram com a estreita amizade de Vicente: Gadelha por mais de 50 anos e Borges, num período mais recente que desembocou num dos trabalhos mais renovados de Vicente Sá. "Trabalhar juntos, pela vida, desde o período do Concerto Cabeças. Trouxemos música e poesia para o mesmo palco, em espaços como Escola Parque, Funarte, Sesc. A gente nunca parou de trabalhar, e ele continuava compondo. Houve ano, em que montamos dois shows. Nossas referências em o Flávio Faria, o Sergio Duboc, Aloísio Brandão. Nos reuníamos na casa do Vicente. Produzimos, Vicente e eu, para áreas da poesia, música, do teatro e até do cinema. Houve peças infantis, documentários. Fizemos shows na Vila Planalto, em espaços abertos. A contribuição do Vicente veio com muita coisa urbana. Não fizemos um sucesso amplo, não ganhamos nenhum festival internacional de música. Mas foi uma vida inteira, 40 anos de música, e de músicas novas. Começamos, no passado com poesia e músicas politizadas, depois seguimos para a poesia pura e simples. Vicente tinha uma verve muito boa para traduzir a cidade e as pessoas", sublinha Gadelha.

Lançado há cerca de três anos, Vicente Sá — Poesia Volume 1 foi álbum que solidificou a amizade mais jovem de Vicente Sá e Túlio Borges. Na obra, Vicente recita poesias, no total, 22 delas. A voz ainda estava firme e marcada. Entre outras parcerias, o músico indica O mundo é nosso salão. "Vicente era uma figura gigante. Daquelas que tem poucas no mundo. Sempre muito desligado em relação à imagem de um intelectual, dentro do que se imagina. Quando o conheci, usava uma cabeleira desgrenhada e um abadá. Ele tinha uma memória prodigiosa, uma bagagem intelectual muito distinta e um raciocínio imediato. Em qualquer conversa, haveria uma viagem rica, leve, engraçada. Ele era uma pessoa leve, um poeta menino. Um menino passarinho", lembra Túlio.

 

Trecho de "Manual do carona", crônica de Vicente Sá publicada no Correio Braziliense em 7 de outubro de 2023:

"Entre as obrigações que a cartilha estabelece, quase todas são para o carona. O condutor é apresentado como um bom homem que está ajudando outro concedendo-lhe meio de transporte gratuito junto a si. O que não deixa de ser verdade, mesmo que o dono do carro seja chato ou pão-duro.

Vamos então às obrigações do carona:

— O carona deve conversar sobre qualquer assunto que o motorista escolher, deve concordar sempre com o ponto de vista dele e nunca discordar de nenhuma afirmação que ele faça, por mais estapafúrdia que pareça;

— Deve sempre estar atento aos sinais de trânsito e placas de estrada para, em caso de necessidade, alertar o motorista;

— No caso do condutor gostar de música, o carona deve acompanhá-lo em suas canções e, se ele for um sam bista, o carona deve puxar sua caixa de fósforo e segui-lo na batucada;

Ricardo Daehn
postado em 26/01/2025 05:55
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