SEGURANÇA PÚBLICA

Fugas na Papuda: quem vive nas proximidades enfrenta um medo diário

Mesmo sendo um presídio com forte segurança, a Papuda registrou escapes de detentos nos últimos anos. O Correio conversou com especialistas, moradores da região e entrevistou um ex-detento que presenciou a escapada de parceiros de cela

A iniciativa foi promovida e organizada pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Distrito Federal (GMF/DF) e pela Vara de Execuções das Penas em Regime Aberto (VEPERA)  -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
A iniciativa foi promovida e organizada pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Distrito Federal (GMF/DF) e pela Vara de Execuções das Penas em Regime Aberto (VEPERA) - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Os casos de fugas de prisioneiros do Complexo Penitenciário da Papuda (CPP) preocupam a população do Distrito Federal. Em janeiro deste ano, o preso de alta periculosidade Argemiro Antônio da Silva, 62 anos, condenado a 125 anos por extorsão mediante sequestro e latrocínio (roubo com morte), escapou após serrar as grades da cela em que ficava e fugiu da ala de idosos do Centro de Internamento e Reeducação (CIR). Ele foi morto no dia 4 deste mês, após envolver-se em um confronto com a Companhia de Policiamento Especializado do Estado de Goiás (CPE/PMGO), em Águas Lindas (GO). 

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Apesar de ser considerada de segurança máxima, a Papuda registrou, de 2022 a janeiro deste ano, nove fugas por rompimento de obstáculo, segundo a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seape). Em março do ano passado, Arlan Cotrim dos Santos, 48 anos, lotado no Centro de Detenção Provisória I (CDP 1), trabalhava internamente no presídio e aproveitou do benefício, por "abuso de confiança" (termo usado pela polícia) e sem rompimento de obstáculos, para fugir. Menos de um mês depois, outros dois detentos escaparam. Edson Felipe de Souza Campos, 21, e Alex Basti da Câmara Mendes, 24, tinham o direito ao trabalho externo e agiram também com "abuso de confiança". Todos foram recapturados.

O Correio conversou com um ex-detento que acompanhou de perto a fuga de três presidiários que, em janeiro de 2020, fizeram um buraco na parede da cela em que estavam e escaparam. Ele revelou detalhes da fuga.

"Cadeia de papelão" 

O ex-detento, que preferiu manter sua identidade em segredo e será identificado como "Senhor F", permaneceu preso por seis meses na Papuda, de novembro de 2019 a maio do ano seguinte, ele aguardava julgamento por uma acusação relacionada à Lei Maria da Penha, no bloco 1 do Centro de Detenção Provisória (CDP) — o qual chama de "cadeia de papelão". 

"Trabalhei como mestre de obras, entendo de construção. A estrutura daquele lugar não é de bloco de concreto, só a laje, as paredes são feitas de tijolo, por isso apelidei de cadeia de papelão. O próprio sistema contribui para as fugas", disse. 

Senhor F presenciou, em janeiro daquele ano, a fuga de André Cândido Aparecido da Silva, Carlos Augusto Mota de Oliveira e Roberto Barbosa dos Santos. "O sistema favoreceu a fuga, na minha maneira de ver, por não ter feito o devido trabalho. Naquela época, no fim de semana, os agentes não davam o banho de sol e nem faziam o bate-cela (operação de fiscalização das celas, realizada por agentes penitenciários), então os detentos se aproveitaram. Eles usaram um dos ferros da jega (cama) e transformaram numa função (ferro afiado) para fazer o buraco lentamente, ao longo de três dias, usavam o próprio tijolo para maquiar o buraco e não descobrirem", detalhou. O ex-detento contou que os três decidiram fugir após perceberem que seriam condenados a uma pena longa. "Eu 'tava' convivendo com bandidos, mas não era um, não era condenado, não tinha motivo para fugir", explicou.

Dois dos três foragidos voltaram à cadeia naquele mesmo mês. Roberto, porém, foi capturado somente em abril. Eles estavam presos por crimes como tentativa de latrocínio, tráfico de drogas, estelionato e formação de quadrilha. 

Investimento

Leonardo Sant'Anna, especialista internacional em segurança pública, apontou que a questão das fugas está relacionada à cultura rasa, em suas palavras, de investimento em segurança pública. "Hoje, existem diversas tecnologias que precisam ser implementadas, e não há notícias abrangentes daqueles que vão buscar novas práticas dentro e fora do país para que esses investimentos sejam melhor aplicados", criticou, destacando que não se refere aos que fazem a gestão do sistema penitenciário, hoje, mas à burocracia desalinhada à necessidade de celeridade para a aplicação de novas práticas, tecnologias e formatos de gestão penitenciária.

Welliton Caixeta Maciel, criminólogo e pesquisador vinculado ao Grupo Candango de Criminologia da Universidade de Brasília (UnB), ressaltou que a questão é estrutural. "As infraestruturas (dos presídios) são incapazes de garantir os direitos das pessoas privadas de liberdade, de acomodar os internos de maneira compatível com as vagas ou garantir condições adequadas de gestão e operação das unidades prisionais", afirmou. Caixeta lembrou que no 1º semestre do ano passado, o DF ocupava a 10ª posição em termos de maior densidade carcerária e apresentava um deficit de 5.273 vagas. "A superlotação carcerária é reconhecida como um problema grave que resulta em tratamento cruel e degradante. Esses e outros fatores nos ajudam a compreender as fugas de internos ou mesmo o não retorno quando conseguem benefícios", analisou o especialista. 

Das sete unidades prisionais em funcionamento na capital, cinco abrigam um número maior de custodiados do que o estimado à estrutura (confira o infográfico). Isso é evidenciado, principalmente, no Centro de Internamento e Reeducação (CIR) que, atualmente, aloja um número 120% maior (3.672) do que a capacidade estabelecida (1.667). A Penitenciária do Distrito Federal (PDF) I e a PDF II abrigam (1.584 e 1.494), ainda, quantidade 80% maior (2.883 e 2.776, respectivamente) que a estabelecida. 

Caixeta enfatizou que, para evitar fugas, é preciso "garantir infraestrutura adequada, quadro funcional compatível, implementar centrais de regulação de vagas, haver atuação dos órgãos de fiscalização e controle sobre a política de criação de vagas no sistema prisional e trabalhar em melhorias estruturais nas condições dignas de cumprimento de penas. O que temos percebido é uma conivência entre sistema de Justiça e sistema penitenciário, com o objetivo de torturar pessoas, em vez de reintegrá-las à sociedade após a responsabilização pelos delitos que cometeram", acrescentou. 

Medo 

Quem vive nas proximidades da Papuda enfrenta um medo diário. Uma moradora, que preferiu não se identificar, contou que, na região, a população sente-se insegura. Na borracharia em que ela e o marido trabalham, as portas fecham mais cedo, sempre antes de escurecer. "A gente não deixa aberto à noite, porque vai que alguém vem e faz a gente de refém, né? Em janeiro, quando o homem fugiu, eu estava sozinha em casa, sendo mulher e tendo filhos crianças, fiquei com medo. Eu acho que eles têm que reforçar a segurança, apesar de falarem que a vigilância é bem reforçada lá, mas continua acontecendo", falou. 

O caminhoneiro Marcos Fabiano Carvalho, 32, mora na região da Nova Betânia há uma década. Desde que chegou, aprendeu a ficar atento aos sinais nas redondezas do lugar em que vive. "Quando a gente vê o helicóptero sobrevoando, fica todo mundo assustado, tranca os portões das chácaras e fecha tudo, porque fica bem próximo (da Papuda). À noite, a gente fica cabreiro, atento aos barulhos e solta os cachorros. Quando eles começam a latir a gente fica mais atento, quando há um movimento estranho eles latem diferente", contou.

Ações

Ao Correio, a Seape informou que o Governo do Distrito Federal (GDF) nomeou de dezembro de 2023 até hoje 614 novos policiais penais para fazer frente à segurança nas unidades prisionais e seus perímetros, além de ter reduzido o excesso demográfico das unidades de regime fechado, com a ativação da Penitenciária IV do Distrito Federal — PDF IV, balanceando a quantidade de custodiados nas unidades de menor rotatividade.

Questionada sobre as fugas empreendidas pelos detentos que destroem obstáculos e pulam barreiras, a  pasta informou que "investe na instalação e manutenção de concertinas, reforço nos alambrados e muros por meio dos Núcleos de Reparos (NUREPs) das unidades prisionais e mantém ativos aparelhos de raios X para o controle de entrada e saída de visitantes, evitando a entrada de materiais proibidos." Após constatação de fuga, iniciam, imediatamente, segundo eles, um trabalho de buscas que permanece até a recaptura do fugitivo.

Sobre esquema de policiamento na região, a Seape diz que rondas externas às unidades são realizadas pela Polícia Militar e por policiais penais da Diretoria Penitenciária de Operações Especiais (DPOE), enquanto que, no interior das unidades, são realizadas rondas por policiais penais das unidades e do serviço voluntário.

Reinserção social 

A promotora de Justiça Vanessa Farias, coordenadora do Núcleo de Controle e Fiscalização do Sistema Prisional (Nupri/MPDFT), sinalizou que medidas destinadas à reinserção dos egressos são fundamentais para a redução da reincidência criminal e para a promoção da segurança pública. "A ausência de suporte pode levar os egressos a um ciclo de marginalização e retorno ao crime, perpetuando a sobrecarga do sistema penitenciário e os custos sociais associados. Iniciativas de reinserção devem priorizar a oferta de educação e qualificação profissional, visando ampliar as oportunidades de emprego para os egressos", apontou.

 


Fugas por rompimento de obstáculos na Papuda

2022: 1
2023: 5
2024: 2
2025: 1, até o momento


Letícia Guedes
postado em 15/02/2025 03:00 / atualizado em 15/02/2025 13:37
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