
Com Nathália Queiroz
"É como se eu tivesse perdido um pedaço de mim." O desabafo é de Izabella Nogueira, professora da rede pública de ensino em Ceilândia. Ela lecionou para Sarah Raíssa Pereira, de apenas 8 anos, no segundo ano do ensino fundamental, em 2024. Foi com a voz embargada e olhos marejados que a educadora compareceu ao Cemitério Campo da Esperança, em Taguatinga, na tarde chuvosa dessa segunda-feira (14/4), para se despedir da estudante, que foi vítima de um desafio letal nas redes sociais.
Desafio do desodorante: Polícia investiga de quem é a culpa pela morte de Sarah Raíssa
Sarah morreu na última quarta-feira (10), após inalar, por tempo prolongado, o conteúdo de um desodorante em aerosol, prática conhecida como o "desafio do desodorante", que circula entre crianças e adolescentes pelo aplicativo TikTok. A brincadeira perigosa levou à parada cardiorrespiratória, e a criança não resistiu.
"Ela era uma menina muito nova, conheceu tão pouco da vida", lamentou o tio, Maurilei Batista, em conversa com o Correio. A professora Joelma Martins, do terceiro ano da escola, lembra com carinho da aluna. "Era muito divertida, querida por todos. Sempre desenhando na sala, cheia de ideias. Ela era uma criança muito artística", conta.
Após o episódio traumático, a professora Izabella relata que o corpo docente escolar pretende trabalhar com as crianças questões como essa para evitar que se repitam. De acordo com dados do Instituto DimiCuida, entre 2014 e 2025, ao menos 56 crianças e adolescentes, com idades entre 7 e 18 anos, morreram no Brasil por participarem de "desafios" perigosos em plataformas digitais. Casos semelhantes ao de Sarah já haviam sido registrados em São Bernardo do Campo (2018) e Pernambuco (2025), também envolvendo a inalação de desodorante aerossol.
Perigo a mão
Segundo o delegado-chefe adjunto da 15ª Delegacia de Polícia (Ceilândia), Walber José de Sousa Lima, a prioridade agora é identificar quem criou e quem compartilhou o conteúdo. "Caso sejam identificados, podem responder por homicídio duplamente qualificado, com pena de até 30 anos de reclusão", afirma.
O delegado levanta um alerta para a importância do monitoramento por parte dos pais. "O conteúdo que os filhos acessam necessita, por parte dos pais e responsáveis, uma maior fiscalização, para que essas crianças não acessem conteúdos inadequados, mesmo dentro de casa, em ambientes considerados seguros", completa.
Para a educadora parental Priscilla Montes, o caso escancara um cenário urgente: crianças que buscam nas redes sociais o pertencimento e a atenção que não encontram no mundo físico. "Isso as torna vulneráveis a ideias extremistas, misoginia, bullying e até abusadores. Basta alguém oferecer atenção, confiança e a sensação de pertencimento, e ela se agarra a isso como salvação", defende.
A especialista defende que o quarto de casa, muitas vezes visto como um espaço seguro pelos pais, pode se tornar muito perigoso. "Com o celular na mão e acesso irrestrito às redes, essas crianças são jogadas num universo que cabe na palma da mão, mas está cheio de riscos. Elas não têm maturidade para lidar com isso", acrescenta Priscilla.
A especialista indica que as redes sociais podem ser perigosas para o desenvolvimento infantil. Mas, segundo ela, a pergunta principal é: por que essas crianças estão lá? "Falta um adulto presente, que oriente, que imponha limites, que converse sobre os riscos e ouça de verdade. Precisamos entender por que crianças tão novas acessam conteúdos feitos para adultos. O sentimento de pertencimento é natural e necessário, mas deve ser guiado pelos pais", conclui a especialista.
Responsabilidade legal
A advogada criminalista Lina Rezende explica que, no Brasil, há dispositivos legais específicos para a responsabilização de menores em situações como as que envolvem os chamados "desafios virtuais", como o "desafio do desodorante".
Lina esclarece que crianças com menos de 12 anos são inimputáveis penalmente, ou seja, não respondem por ato infracional. Já adolescentes entre 12 e 18 anos podem ser responsabilizados, inclusive por crimes graves como homicídio doloso ou induzimento ao suicídio.
Para a advogada, além das responsabilidades individuais, é preciso cobrar as plataformas digitais. "A jurisprudência tem avançado no sentido de reconhecer que redes como o TikTok têm um dever de vigilância e moderação. Elas não podem simplesmente alegar que apenas hospedam conteúdo", garante. Ela ainda ressalta que falhas de moderação podem gerar indenizações por danos morais e materiais perante a Justiça.
O Correio tentou contato com a rede social TikTok, mas não obteve retorno até o momento.
*Estagiário sob a supervisão de Patrick Selvatti