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Pessoa, Ludovico e JK — O primeiro aroma de Brasília

Num avião especial, cedido pela Aeronáutica, no dia 30 de abril de 1955, o Marechal Pessoa voa para Goiânia, ao encontro de Juca Ludovico. Também relembramos como a antiga cidade de Harapa, no Vale do Indo, serviu de inspiração simbólica para Brasília, concebida dentro do modernismo de Lucio Costa e Oscar Niemeyer

» JORGE HENRIQUE CARTAXO*

» LENORA BARBO*

Especial para o Correio

Harapa (3000/4000 a.C.), no Vale do Indo, onde hoje é a província de Punjab, no Paquistão, talvez tenha sido uma das mais sofisticadas cidades do mundo antigo. Suas ruas eram organizadas em forma de "grelha viária" ou, na terminologia contemporânea, "malha urbana ortogonal". Saneamento básico, com banheiros, esgotos e drenagem, além de um surpreendente sistema de abastecimento de água e um cinturão verde com agricultura irrigada, distinguiam a antiga cidade. As construções eram feitas com tijolos cozidos de forma padronizada. Plataformas, muros de proteção, celeiros, centro administrativo e religioso integravam a paisagem urbana. Pesquisas arqueológicas encontraram sinais de organização de defesa e de governo.

Inspirada parte na Bauhaus de Walter Gropius e parte no funcionalismo da Carta de Atenas de Le Corbusier, Brasília seria a nova civilização lírica de Oscar Niemeyer e Lucio Costa. A nossa Harapa modernista, hoje tão distante como o início das inspirações e a percepção do desconhecimento. Mesmo assim, ainda linda!

José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque tinha 69 anos, naquele outubro de 1954, quando recebeu o convite do então presidente da República, Café Filho, para assumir a presidência da Comissão de Localização da Nova Capital. Getúlio Vargas havia cometido suicídio na manhã do dia 24 de agosto. O general Caiado de Castro, chefe da Casa Militar de Vargas e presidente da Comissão de Localização da Nova Capital, constituída nos termos da Lei nº 1.803, de 5 de janeiro de 1953, foi destituído de suas funções por Café Filho. Caiado e Pessoa davam, e dariam, prosseguimento aos trabalhos para a mudança da capital iniciados pelo general Polli Coelho, que presidiu a Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital do Brasil. O ex-presidente Dutra, nos termos da Constituição de 1946, havia criado a Comissão de Estudos, convidando o general Polli Coelho para conduzir os trabalhos. É importante esclarecer as diferenças técnicas e políticas entre os dois momentos. Em 1946, Dutra cria a Comissão de Estudos cujo trabalho final foi a Lei nº 1.803/53, que autorizava o Poder Executivo a constituir a Comissão de Localização (não mais de estudos).

Polli Coelho enfrentou um desafio árduo imposto pelas lideranças políticas mineiras que propugnavam pelo Triângulo Mineiro como sítio para a edificação da Nova Capital. Caiado de Castro não teve restrições, a não ser o tempo. Mas, com o apoio e a diligência do senador goiano, recém-eleito, Coimbra Bueno, contratou a empresa Donald J. Belcher & Associates, Incorporated, para a execução de estudos de foto-análise e interpretação do "Quadrilátero do Congresso" de 52 mil quilômetros quadrados — não muito diferente do Quadrilátero Cruls —, onde deveria ser definido o sítio, com cinco mil quilômetros quadrados, onde seria demarcado o novo Distrito Federal que abrigaria a Nova Capital. Estudo fundamental, que o marechal Pessoa saberia valorizar e utilizar.

A presença desses três militares no comando dessas comissões, bem como a absoluta sintonia entre eles, além da presença de muitos oficiais nas próprias comissões e subcomissões a ela subordinadas, indica bem que a decisão de construir Brasília, imediatamente no pós-guerra, foi uma decisão de Estado e não de governo. Com exceção de Hipólito da Costa que, em 1813, de Londres, sugeriu a transferência da capital do Brasil para o Planalto Central, já indicando, com surpreendente precisão, o local onde hoje é o Plano Piloto de Brasília, lideranças importantes e com funções estratégicas que defenderam esse lugar, esse mesmo lugar, eram militares: José Bonifácio era um polímata e militar, que lutou no exército português contra as tropas de Napoleão; Adolfo Varnhagen era diplomata e militar, formado na academia militar de Lisboa; o belga Luiz Cruls era astrônomo, geodesista e também militar, na Bélgica e no Brasil; Polli Coelho era general; Caiado de Castro era general; José Pessoa era marechal e herói de guerra. 

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No dia 4 de fevereiro de 1955, em um Beechcraft da FAB, o marechal Pessoa, o marechal Mário Travassos e o coronel e médico Ernesto Silva voaram, pela primeira vez, para o Planalto Central. Fizeram uma escala em Pirapora, onde um grupo de técnicos da DNEF atualizou os membros da Comissão Pessoa — vamos chamar assim — sobre as obras da estrada de ferro que ligaria a futura capital a Belo Horizonte. No final da tarde daquele mesmo dia, o Beechcraft decolou em direção a Formosa. Ali visitaram a hoje singular "Águas Emendadas", onde se distribuem as nascentes para o Amazonas, o São Francisco e o Paraná-Paraguai. Local que tanto encantou Varnhagen! Na tarde do dia 5 de fevereiro, voaram para Planaltina.

Recebidos pelo prefeito Veluziano Antônio da Silva em grande comitiva — agora em companhia do vice-governador de Goiás, Bernardo Sayão —, do aeroporto rumaram direto para a Pedra Fundamental do DF, edificada pelo presidente Epitácio Pessoa — tio do marechal Pessoa —, em 1922, atendendo a um pleito do então deputado federal goiano, Americano do Brasil. Feita a visita, seguiram para Goiânia.

Enquanto o marechal Pessoa concluía a sua primeira visita ao Planalto Central, a equipe da Donald Belcher encaminhou para a Comissão, naquele mesmo mês de fevereiro, o seu relatório técnico conclusivo, indicando os cinco sítios para avaliação final. Pessoa convoca todos os membros da Comissão de Localização para uma visita in loco da região. De volta ao Rio, ele nomeia uma subcomissão para a fixação dos critérios para a análise e escolha definitiva do melhor sítio. Integravam essa subcomissão o general Nelson de Castro e os engenheiros Paulo de Assis Ribeiro, Fábio Macedo Soares e Salomão Serebrenick. A subcomissão parecia inativa. Já estávamos em março, e nada se resolvia. O marechal Pessoa não gostou da procrastinação e, suspeitando de uma possível manobra, ampliou a subcomissão. Foram indicados os engenheiros Raul Pena Firme, José Oliveira Reis e Júlio Reis. Como relator, foi indicado o arquiteto e engenheiro Raul Pena Firme. No dia 4 de abril, o relator apresentou à Comissão as Normas Técnicas para a escolha do melhor sítio, rigorosamente nos termos da Lei nº 1.803, de 5 de janeiro de 1953. No dia 13 de abril de 1955, foram escolhidos os sítios Castanho e Verde.

Com os relatórios e as decisões em mãos, no dia 27 de abril, o marechal Pessoa vai ao Catete solicitar ao presidente Café Filho os atos necessários para que fosse declarado de utilidade pública, para fins de desapropriação, o perímetro do futuro Distrito Federal. O presidente não acolheu a solicitação do marechal Pessoa, que também não aceitou a inação do Catete. Num avião especial, cedido pela Aeronáutica, no dia 30 de abril, o marechal voa para Goiânia. Agora no Palácio das Esmeraldas, naquela mesma noite, com Juca Ludovico e assessores, foi elaborado o decreto de desapropriação, nos termos da Constituição do Estado de Goiás. Na noite do dia seguinte, numa grande festa no Palácio, o governador Juca Ludovico leu o decreto, comunicando ao Brasil a definição do território do novo Distrito Federal.

Fotos: Arquivo/IHGDF - De terno branco, Juca Ludovico na primeira viagem de JK ao local onde ia ser construída Brasília

No dia 4 de abril, no histórico comício de Jataí, iniciando a sua campanha presidencial, Juscelino Kubitschek se manifesta pela primeira vez sobre a mudança da capital para o Planalto Central do Brasil. A famosa pergunta de Toniquinho a JK, que o candidato respondeu arguindo o seu compromisso com a Constituição que previa a mudança da capital para o Planalto Central do Brasil. O que deve ser lembrado agora é que o governador Juca Ludovico e demais lideranças políticas do estado de Goiás também estavam naquela cena, ainda que tenha evitado aparecer na foto. O que dá ao fato a sua real dimensão histórica, sobretudo depois do trabalho do marechal Pessoa, das ações longas e contínuas do Coimbra Bueno e da decisão do governador Juca Ludovico.

A crise política no país, naquele momento, apenas aumentava, como já mostramos em artigos anteriores, mas a decisão de se construir a Nova Capital não se alterava. No dia 11 de maio, o governador Juca Ludovico decidiu suspender qualquer alienação de terras devolutas ou pertencentes ao governo estadual, compreendidas na área já destinada ao novo Distrito Federal. Em julho, o governador e os parlamentares de Goiás solicitaram ao presidente da República a homologação, por decreto executivo, do local da futura capital. O presidente atenderia em setembro. Em outubro, o governador Ludovico criou a Comissão de Cooperação para a Mudança da Capital. Em 6 de novembro de 1955, o presidente da República em exercício, o senador Nereu Ramos, sancionou o Orçamento da República para o ano de 1956, estabelecendo o valor de cento e vinte milhões de cruzeiros para as despesas de desapropriação da área onde seria o novo Distrito Federal.

*Jorge Henrique Cartaxo — jornalista e Diretor de Relações Institucionais do IHGDF
*Lenora Barbo — arquiteta e Diretora do Centro de Documentação do IHGDF

 


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