Pertencimento, segurança, afeto, acolhimento. Relatos de dependentes químicos sobre reuniões do Narcóticos Anônimos (NA) mostram a importância de terapias regulares em grupo para o tratamento do vício em entorpecentes. Em funcionamento há 30 anos no Distrito Federal, o NA conta com 42 grupos na capital e no Entorno. Especialistas ouvidos pelo Correio destacam que os tratamentos em grupo, atrelados a tratamentos com profissionais da saúde, fortalecem a motivação para manter-se longe do vício.
"As terapias em grupo em organizações como o NA desempenham um papel importantíssimo e essencial no processo de recuperação de dependentes químicos. Elas oferecem um espaço de acolhimento, pertencimento e identificação entre os membros", analisa a psicóloga especialista em psicologia sistêmica Kênia Ramos de Souza.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
"Ao compartilharem histórias, conquistas e desafios, os participantes percebem que não estão sozinhos em sua trajetória. A troca de experiências estimula a autorresponsabilidade e fortalece a motivação para manter a abstinência. O grupo passa a funcionar como uma rede de apoio, promovendo a resiliência e o desenvolvimento de estratégias mais saudáveis", completa a profissional, que atua na condução de processos terapêuticos e na liderança estratégica de equipes multidisciplinares.
Cristina* (nome fictício) está limpa há nove anos, quatro meses e seis dias e atribui aos Narcóticos Anônimos boa parte da sua evolução na luta contra a dependência química. "Depois de já ter tentado parar várias vezes, resolvi buscar o NA na internet. Na primeira reunião, chorei muito. Foi um choro de alívio, paz e esperança. Mudei hábitos, pessoas e lugares os quais eu andava e frequentava. Nas reuniões, aprendi a reconhecer que sou portadora de uma doença incurável, progressiva e fatal, que pode me matar se eu continuar no uso", conta. "Hoje sou esposa, mãe, filha e uma pessoa produtiva da sociedade", completa.
Irmandade
O grupo Narcóticos Anônimos se denomina como uma irmandade ou sociedade sem fins lucrativos, de homens e mulheres para quem as drogas se tornaram um problema maior. "Somos adictos em recuperação, que nos reunimos regularmente para ajudarmos uns aos outros a nos mantermos limpos. É um programa de total abstinência de todas as drogas e há somente um requisito para ser membro: o desejo de parar de usar", relata ao Correio outro frequentador das reuniões do grupo. "Só consegui me manter limpo porque me foi falado, quando entrei, para ficar limpo 'somente no dia de hoje' e voltar no dia seguinte. Usei a força dos meus companheiros, até porque não havia nenhuma em mim. Vivo um dia de cada vez. Peço ajuda a um companheiro de irmandade quando sinto vontade de usar e sempre funciona", disse.
"Nosso programa é um conjunto de princípios escritos de uma maneira tão simples que podemos segui-los em nossas vidas diárias. O NA não tem subterfúgios, não somos filiados a nenhuma outra organização, não temos matrícula nem taxas, não há compromissos escritos, nem promessas a fazer a ninguém. Não estamos ligados a nenhum grupo político, religioso ou policial e, em nenhum momento, estamos sob vigilância", explica o participante ouvido pela reportagem. "Aprendemos com nossa experiência coletiva que aqueles que continuam voltando regularmente às nossas reuniões mantêm-se limpos", acrescenta.
Psicólogo especializado em dependência química e membro da Associação Brasileira de Estudos em Álcool e Drogas (ABEAD), Lucas Cardoso explica que a troca de experiências serve de combustível para a recuperação. "As experiências compartilhadas de ressignificação de vida, coragem e esperança oferecem suporte mútuo, serenidade para agir e reagir de forma adequada às adversidades da vida. Por meio da identificação, nasce a motivação para construir uma sólida base de recuperação e qualidade de vida", analisa.
"É importante manter a confidencialidade das experiências e dos desafios enfrentados para que os grupos permaneçam levando a mensagem de recuperação. Os encontros ajudam a perder o desejo de usar drogas ou realizar outros comportamentos viciantes, envolvendo as pessoas em uma atmosfera propícia de superação, mudança de comportamento e crescimento pessoal", avalia.
Tratamento
A especialista Kênia Ramos de Souza ressalta que, para o tratamento da dependência química, é importante também a terapia individual. "Tanto a individual como a em grupo auxiliam o indivíduo a compreender os fatores emocionais, psicológicos e sociais que alimentam o ciclo do vício. Muitas vezes, a dependência está associada a questões familiares, a traumas vivenciados, baixa autoestima, dificuldades de regulação emocional ou padrões de relacionamento disfuncionais", explica.
"O processo terapêutico promove o autoconhecimento, favorece a elaboração dessas questões e possibilita o desenvolvimento de novas formas de lidar com o estresse, a ansiedade e os gatilhos para o uso da substância", analisa Kênia. "Além disso, a terapia ajuda a reconstruir projetos de vida, estabelecer metas realistas e fortalecer a capacidade de escolha, oferecendo ao paciente ferramentas para sustentar a abstinência e criar uma vida mais saudável e equilibrada", complementa.
Professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) e CEO da Apuí Saúde Mental, a psiquiatra Helena Moura afirma que os grupos de apoio são essenciais para gerar acolhimento, sensação de pertencimento e troca de experiências para se atingir um objetivo em comum, que é viver bem sem as substâncias de abuso. Mas em muitos casos, segundo ela, medicações podem ser necessárias aliadas às outras terapias. "Remédios podem ser indicados para manejo dos sintomas de abstinência, também chamados de desintoxicação; manejo da fissura, que é o desejo intenso e urgente de consumir substâncias; e no tratamento de comorbidades psiquiátricas, que estão presentes em cerca de 50% dos casos", detalha.
Procure ajuda
NARCÓTICOS ANÔNIMOS
SITE: www.na.org.br
Linha de ajuda (Whatsapp): 3003-5222
