
Enquanto todos dormiam, Liliane (nome fictício) acomodava a cadeira na sacada do prédio e aguardava pelo filho mais velho, Vinícius (nome fictício), hoje com 31 anos e preso no Complexo Penitenciário da Papuda por roubo. A espera atravessava a madrugada. O coração só se "aliviava" ao vê-lo descer a rua, cambaleante pela cocaína e gritando "Mãe, joga a chave", geralmente, depois das 5h da manhã.
Foram quase 17 anos nessa rotina, a mesma que aprisiona milhares dos chamados "codependentes": pessoas que vivem num ciclo de dor, de anulação de si mesmas e de doação ao ente dependente químico. Histórias diferentes, mas um mesmo anseio: a cura.
Casada e mãe de outras duas jovens, Liliane sempre prezou pelo bem-estar dos filhos. Provia escola particular, levava à igreja e nunca deixou faltar nada. Como ela diz, "têm tudo do bom e do melhor". O mais velho era hiperativo desde criança: jogava bola e soltava pipa na rua o dia inteiro, tocava campainha dos vizinhos e corria. Numa dessas saídas, voltou para casa com um cheiro inconfundível. À época, tinha 14 anos. "Ali, começou a minha luta, quando descobri que ele fumava cigarro", relatou a dona de casa. Vinícius pediu perdão, mas a situação piorou rápido.
A mãe detalha um episódio que a marcou para sempre. Aos 16, Vinícius saiu para comprar um refrigerante e fugiu para o Rio de Janeiro com um colega da rua onde morava. Depois de uma semana sem notícias, Liliane recebeu uma ligação da polícia de Minas Gerais. "Eles queriam voltar e tinham pedalado do Rio até Minas, na tentativa de retornar para casa. Fomos (eu e a mãe do amigo) buscar."
Mas, dois dias depois, outra fuga. Dessa vez, para Caldas Novas. O pai conseguiu descobrir a localização e foi buscá-lo. "Tudo isso ele fez com o dinheiro do limite do meu cartão." Até então, a dona de casa acreditava que o filho usava apenas cigarro, mas a descoberta do pior estava por vir.
Vício na cadeia
A primeira prisão de Vinícius foi pouco depois de ele completar 18 anos. No vaivém da cadeia, ganhou o regime aberto e semiaberto, mas descumpriu horários e retornou ao fechado. Há seis meses, regressou após não voltar do trabalho externo para o Centro de Progressão Penitenciária (CPP). Liliane costuma ir em todas as visitas e logo nas primeiras, ele confessou. "Disse que tinha usado cocaína, mas que não era viciado e largava quando quisesse. Mas eu sabia que não era assim."
O ingresso nas drogas tomou uma proporção que colocou em risco a vida de Liliane e da família. Na cadeia, Vinícius fez dívidas com traficantes que, juntas, custeiam uma casa de alto padrão. "Eram R$ 1 mil a R$ 2 mil por semana. Os caras saíam no saidão e vinham na minha porta me ameaçar", relata. Ansiedade, depressão e medo ainda norteiam a vida da dona de casa, que, frequentemente, precisa de remédios para dormir. "Ele tirou meu sorriso. A gente não vive. A gente só espera por algo que nem sei o que é. Eu vivo bem, tenho esposo e filhas excelentes, mas estou doente por dentro."
Um dos piores momentos foi quando Vinícius passou a cumprir a pena no CPP. A unidade prisional sofre com a entrada escancarada de drogas, bebidas, cigarros e celulares. "Ele entrava em contato comigo por um celular. Alugava por uma hora e pedia R$ 200, R$ 500, às vezes, R$ 1 mil." Quando negava, Vinícius explodia. "Vão me pegar, mãe. Se eu não mandar mais nada, a senhora já sabe o que aconteceu", gritava em áudios enviados pelo WhatsApp.
A psiquiatra Elaine Bida, do Sistema Único de Saúde (SUS), explica, de maneira geral, o comportamento manipulador e chantagista. "O dependente começa a viver apenas em função da droga. Tudo o que ele puder mobilizar para conseguir o entorpecente, ele vai fazer. O foco é, nesse caso, garantir o acesso a ela, em busca do prazer, da euforia e do bem-estar imediato. A partir disso, começa a perder a noção do limite do aceitável ou do proibido, como se está magoando ou prejudicando o familiar, por exemplo.".
Liliane acredita que o filho está doente, mesmo com a negativa dele. "Meus sonhos são simples, mas que valem muito para mim. Quero poder viajar com a cabeça em paz, fazer um curso de costureira, talvez, e ajudar na igreja. Coisas básicas, mas que, hoje, me custam."
Anseio pela recuperação
A ideia de que a dependência química atinge apenas os mais pobres é um equívoco. A pesquisa Estado da Juventude, Drogas, Prisões e Acidentes, baseada em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que 62% dos usuários de drogas pertencem à classe A e 85% são brancos.
A professora Celiamar Vasconcelos, 40, não é rica. Assim como Liliane, batalhou para oferecer o melhor à filha única, A.V.F., 17, hoje internada numa clínica psiquiátrica de Ceilândia.
Celiamar é separada do genitor da adolescente, que paga pensão, mas evita qualquer vínculo. Por algumas vezes, disse: "Ainda bem que está terminando. Quando fizer 18, não preciso mais pagar pensão nem ter contato." Para sustentar a casa, se manteve em vários empregos: trabalhou meio período em um restaurante e como recepcionista em um cursinho pré-vestibular. A escolha dos horários era para estar sempre presente do desenvolvimento da filha. "O que mais temia era o envolvimento dela no mundo das drogas. Por isso, priorizei a educação e o amor."
Mãe e filha moravam em Barreiras (BA). Quando a adolescente completou 14 anos, apresentou uma mudança de comportamento depois de ingressar em uma escola pública da região, em 2022. A instituição era próxima à nova casa alugada pela mãe justamente para acompanhar a menor de perto. "Ela era um exemplo. Nunca tinha dado trabalho, nem havia reclamação sobre o comportamento dela. Onde eu chegava, as pessoas a elogiavam. Ela só mudou pelas drogas, até o gosto musical sofreu influências negativas", contou.
"Um dia, a menina chegou em casa com cheiro de cigarro. Conversei, alertei e ela disse que tinha gostado de maconha", lembra-se. A.V.F estudou somente o primeiro semestre daquele ano e abandonou a escola. Notícias sobre a filha passaram a vir de terceiros, ou quando a mãe perambulava pela cidade em busca de informações. "Saí tantas vezes atrás dela, debaixo de chuva, de madrugada, a pé, chorando e procurando. Foram dias horríveis. Dói ao relembrar", desabafou.
Em 2023, Celiamar retornou com a filha a Unaí (MG). Até então, A.V.F não conhecia o crack. A rotina de tentativa de resgate da adolescente se arrastara e a levou à perda de contratos de trabalho e acúmulo de dívidas. O que recebia dos serviços e da pensão alimentícia, paga pelo genitor da menor, ia para consultas e tratamentos. De Minas Gerais, tentava, na Justiça, uma vaga numa clínica do DF. "Bati demais na porta do Ministério Público. Lutei o ano inteiro, indo e vindo nos órgãos, pedindo ajuda a Deus e a todos que me ouvissem. Tudo para que olhassem para a minha filha, que ainda era uma criança, corrompida pelo mundo." Em 2023, a situação se agravou. A.V.F. estava de vez no crack e fugia de casa frequentemente. "Depois de muito choro e insistência, eu já tomando remédio para depressão e tentando me manter em pé, consegui a ordem judicial."
Durante a internação, a mãe continuou morando em Unaí e, mesmo com pouco dinheiro, visitava a adolescente em Brasília. Eram R$ 80 de passagem, mais ônibus até à clínica e comida, além dos lanches que levava à filha. "Ela ficava feliz com MC Donald's e chocolate."
Luz no fim do túnel
No ano seguinte, veio a esperança. Do ano de ingresso na clínica até novembro de 2024 — quando recebeu alta — a adolescente participou das atividades no internato, engordou e parecia se recuperar. Para Celiamar, era a resposta a suas orações. Uma noite, como de costume, foram à igreja e, depois, tomaram açaí. Na lanchonete, a adolescente disse que queria fumar um cigarro e chamou uma amiga para acompanhá-la. Segundo a mãe, o uso do cigarro era indicado por especialistas como redutor dos danos durante a abstinência. Enquanto estavam no estabelecimento, passou um usuário que conhecia a menina e a ofereceu droga. "Ela rejeitou", conta a professora.
Na volta para a casa, A.V.F. disse que estava orgulhosa de si mesma. "Dormimos juntas, como sempre fazíamos. Estava em paz e feliz. Quando acordei, ela já não estava mais ao meu lado." Celiamar chorou, sentiu a frustração e a sensação de ter voltado à estaca zero. A mãe conseguiu, em fevereiro deste ano, o retorno da filha à clínica. Enquanto segue esperançosa pela recuperação da adolescente, pensa nos sonhos que deixou para trás e anseia poder realizá-los. "Eu aprendi que se você não estiver bem, não deve se entregar. A sua fé é o que te sustenta. Nunca foi uma opção virar as costas para a minha filha. Desistir dela não está nos meus planos", relatou, emocionada.
Para a psiquiatra Elaine Bida, o sofrimento da mãe é típico de quem vive a codependência. "A pessoa desencadeia uma sobrecarga emocional grande, há impacto no financeiro e, consequentemente, surge a ansiedade e a depressão, pois ela desenvolve uma 'culpa' do tipo 'onde foi que eu errei?'. Vêm questionamentos internos. Como você quer salvar alguém, mas sente que não está bem, se sente fragilizado ou até incapaz? Esse familiar também precisa de tratamento, assim como o dependente, pois é adoecimento familiar", descreve.
Um artigo escrito por um grupo de pesquisadores e publicado na Revista Enfermagem Atual, em 2018, analisou a percepção de familiares de usuários de substâncias psicoativas de uma comunidade terapêutica do Sul do Brasil. A conclusão foi de que todos os familiares ouvidos na pesquisa estavam emocionalmente dependentes dos filhos, filhas, esposas, irmãos. A maioria não conseguia manter sua identidade e autonomia, passando a viver a vida do dependente químico. O estudo revelou, ainda, atitudes como controle excessivo sobre o dependente, bem como dificuldades em estabelecer limites para si e para o dependente, comportamentos apontados como o maior gerador de conflitos e desentendimentos nas relações familiares.
O ciclo
Reconhecer a dependência química é um passo difícil e demorado. Estima-se que leve, em média, três anos para a pessoa admitir o problema, e outros três para decidir buscar ajuda, explica a psiquiatra do SUS Elaine Bida. A profissional já atuou em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do DF, de Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso, e conhece de perto os processos do tratamento.
Inicialmente, quem está em um grau elevado de vício — seja em drogas, seja no cigarro ou no álcool — tende a negar a própria condição. "Ela não percebe que é uma doença. Quando você começa a usar, cria-se a tolerância, e a ingestão passa a ser em quantidades cada vez maiores para sentir o mesmo efeito inicial." A médica ressalta que o contato com a droga independe de classe social. Muitas vezes, é influenciado pelo círculo de amigos e a experimentação leva a um caminho perigoso e de difícil retorno. "O uso na adolescência pode ter relação com a pressão social. A pessoa acha que, se não fumar, não 'será legal'."
Entre os familiares ouvidos pela reportagem, uma queixa em comum: a manipulação. Essa estratégia, por vezes confundida com psicopatia, tem um só objetivo — conseguir a droga. Para isso, o dependente recorre a chantagens emocionais, exige dinheiro e pode até praticar violência psicológica ou física contra a família. "O usuário passa a viver em função apenas da droga. Não é questão de força de vontade ou mau caráter, mas, naquele momento, o foco é o prazer imediato, ou mesmo o controle dos sintomas de abstinência", frisa a psiquiatra.
O tratamento varia conforme o caso. Mesmo quando a família tem consciência da gravidade, o dependente negligencia e ignora a necessidade de ajuda. Segundo a especialista, a recuperação exige um trabalho multidisciplinar, com rede de apoio, avaliação clínica, medicamentos e atividades terapêuticas com humanização, respeito e individualização persistentes.
Rede pública
O CAPS é a porta de entrada para o tratamento à saúde mental na rede pública de saúde. O DF conta com 18 CAPS em funcionamento. Há duas outras unidades em construção, no Gama e no Recanto das Emas. Essas, destinadas a pessoas adultas. Outras duas, em Ceilândia e Taguatinga, estão em fase final de licitação para a contratação da empresa responsável pela obra. As informações foram dadas ao Correio pela subsecretária de saúde mental da SES-DF, Fernanda Falcomer.
Segundo a subsecretária, a codependência é um problema real e necessita de cuidado, assim como para o dependente químico. "Essa pessoa precisa de uma atenção individual. O tratamento oferece. Há grupos de famílias para trabalhar essa questão." Entre janeiro e junho deste ano, os 18 CAPS realizaram 199.088 procedimentos, tanto para os pacientes quanto para os familiares.
"O CAPS é o serviço de saúde de base territorial, que vai atender as pessoas, famílias. Tem uma equipe interdisciplinar e a ideia é trabalhar na reabilitação do paciente. A primeira coisa é o acolhimento. É a fase do cadastro, onde vamos ter uma ideia da história dessas pessoas. A partir disso, montamos um projeto terapêutico singular, com o tratamento correto", frisou a subsecretária.
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