
A nova versão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) do Distrito Federal, aprovada pela Câmara Legislativa (CLDF) na última terça-feira, não traz instrumentos práticos para garantir a preservação dos mananciais do Distrito Federal, apesar de avanços pontuais em relação ao plano de 2009. É o que dizem especialistas ouvidos pelo Correio, para os quais o documento repete fragilidades estruturais que acompanham a política territorial do DF há décadas, como a desconexão com planos já existentes e a incapacidade de transformar a água em condicionante real para o crescimento urbano.
Mas para a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), responsável por coordenar a revisão do plano, que segue agora para a sanção do governador Ibaneis Rocha, o novo PDOT traz mecanismos concretos ao vincular expansão urbana e regularização à capacidade hídrica, exigir avaliação da capacidade de suporte dos mananciais, prever monitoramento permanente, instituir áreas prioritárias para resiliência hídrica e orientar a adoção de infraestrutura verde e azul como ferramenta de controle. "Dessa forma, não é apenas orientador e cria bases para fiscalização integrada", informou a pasta, em nota.
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O pesquisador Henrique Marinho Leite Chaves, professor da Universidade de Brasília (UnB), especialista em recursos hídricos, hidrologia, mudanças climáticas e planejamento ambiental com foco no Cerrado e no Distrito Federal, porém, vê no texto aprovado pela Câmara Legislativa uma intenção de modernização, mas não um instrumento efetivo. Na opinião dele, o PDOT mantém diretrizes genéricas e evita decisões claras — especialmente onde há conflito entre expansão imobiliária e proteção hídrica.
"É um plano muito generalista em relação aos recursos hídricos. Na prática, ele não coloca a água como eixo central", afirmou o pesquisador. Chaves lembra que, desde 2006, o DF possui um Plano de Gestão Integrada de Recursos Hídricos — nunca revisado — e, desde 2018, o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE), em vigor, com mapas oficiais indicando áreas de recarga crítica, risco erosivo e limites ambientais. "O PDOT menciona o ZEE, mas não utiliza seus mapas nem transforma suas diretrizes em critérios técnicos obrigatórios. É como operar um paciente sem fazer exames."
Chaves avalia que a maior lacuna do plano está na ausência de cruzamento obrigatório entre expansão urbana e disponibilidade hídrica comprovada. A expansão prevista no PDOT — especialmente nas 26 áreas de regularização e adensamento populacional — é vista por ele como o ponto mais sensível. "Quando você duplica a população de uma área, quadruplica o consumo de água. E aumenta, proporcionalmente, a produção de esgoto. A pergunta é simples: para onde vai esse esgoto? E de onde virá essa água?", questionou.
Padrão
A ativista socioambiental Lúcia Mendes, coordenadora do Fórum de Defesa das Águas do DF, acredita que o novo PDOT repete um padrão já conhecido no Distrito Federal. Segundo ela, a revisão do plano "não colocou a questão dos recursos hídricos, a preservação das nascentes, o meio ambiente no centro das decisões territoriais".
Além disso, para Lúcia, áreas rurais produtoras de água continuam sob pressão direta de urbanização. Ela cita a Serrinha do Paranoá como exemplo dessa fragilidade. "Em 2009, o PDOT projetou a região como área de expansão urbana. Naquela época, só se reconheciam quatro nascentes. Hoje, após um mapeamento feito pela comunidade, sabemos que existem mais de 100 nascentes na região", lembrou.
Segundo ela, "a maior demanda habitacional no DF é de classe pobre", mas o plano "só sinaliza com novos setores habitacionais para classe média e classe média alta". "O modelo de ocupação permanece o mesmo. Primeiro, deixam ocupar, não fiscalizam as ocupações irregulares e, depois, vêm com a proposta de regularização."
Apesar das críticas, Lúcia reconhece que houve avanços pontuais no processo. Um deles foi a inclusão do planejamento territorial baseado em bacias hidrográficas, aprovado por emenda. Mas ela assinalou que isso só ocorreu após muita negociação, às vésperas da votação. "Sem parâmetros claros de aplicação, a medida corre o risco de não resolver o problema", alertou.
Caminhos
Tanto Lúcia quanto Chaves apontaram caminhos para aprimorar o PDOT. O pesquisador da UnB acredita que a primeira medida é atualizar o Plano de Gestão Integrada de Recursos Hídricos e tornar vinculantes os mapas ambientais do Zoneamento Ecológico-Econômico. Ele defendeu, ainda, que regularizações e novos parcelamentos só ocorram após comprovação de oferta hídrica, capacidade de diluição de esgoto e adoção de soluções baseadas na natureza, como jardins de chuva e pavimentos permeáveis.
Lúcia Mendes ressaltou que nenhuma medida funcionará sem fiscalização efetiva e transparência — incluindo o uso de imagens de satélite e plataformas públicas, como o Sistema Distrital de Informações Ambientais do Distrito Federal (Sisdia), ignoradas pelo texto atual. Para ela, o PDOT precisa ser executado com governança compartilhada entre meio ambiente, planejamento, habitação e recursos hídricos, e com participação social real, especialmente em regiões produtoras de água. "É preciso inverter a lógica: primeiro garantir o território e a água, depois planejar a ocupação", resume.
Água como condicionante territorial
De acordo com a Seduh, o novo PDOT trata os recursos hídricos como elemento estruturante da política territorial e estabelece diretrizes claras para sua proteção, monitoramento e recuperação. "O texto integra obrigatoriamente o planejamento territorial ao ZEE e aos planos de saneamento, drenagem e resiliência climática, fortalecendo a articulação entre uso do solo e gestão hídrica", informou a secretaria.
Segundo a pasta, o plano define as Áreas Prioritárias para Resiliência Hídrica, que passam a orientar decisões de expansão urbana, regularização e implantação de infraestruturas. "Complementarmente, promove o controle da impermeabilização do solo, a preservação das áreas de recarga e ações de reflorestamento estratégico, além de tornar obrigatório o monitoramento contínuo da quantidade e da qualidade da água em mananciais superficiais e subterrâneos."
Para a secretaria, o novo PDOT transforma a disponibilidade hídrica em condicionante territorial no DF. "A expansão urbana só poderá ocorrer mediante demonstração técnica de capacidade hídrica, respeito às áreas de recarga, limites ambientais e capacidade de suporte de mananciais, garantindo que o território não avance sobre áreas sensíveis ou sem disponibilidade de água", garantiu.
Ainda de acordo com a Seduh, as áreas que podem crescer "são aquelas consolidadas com infraestrutura, localizadas ao longo dos eixos de transporte e fora de territórios ambientalmente sensíveis, desde que haja viabilidade hídrica. A conciliação ocorre por meio do adensamento em áreas consolidadas, integração entre planos setoriais, proteção de recarga, recuperação ambiental e controle da impermeabilização".
A pasta assegurou, também, que não haverá a criação ou a regulamentação de condomínios residenciais em áreas rurais. De acordo com a Seduh, os condomínios rurais, previstos no texto, não alteram a classificação do uso do solo e não transformam áreas rurais em urbanas. "Permanecem sujeitos às condições próprias do meio rural, devendo respeitar a capacidade hídrica local, o zoneamento ambiental, as áreas sensíveis e os requisitos territoriais e ambientais aplicáveis, além de, obrigatoriamente, demonstrar predominância de atividades rurais", completou.
A integração entre fiscalização territorial, regularização fundiária e proteção hídrica ocorrerá, de acordo com a Seduh, por meio do funcionamento articulado do Sistema de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal (Sisplan), que reúne o Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do DF (Conplan), o Conselho de Meio Ambiente (Conam), o Conselho de Recursos Hídricos do Distrito Federal (CRH), o Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS) e o Conselho de Habitação de Interesse Social (Condhab) e demais conselhos, e pela obrigatoriedade de compatibilização entre PDOT, ZEE, planos setoriais e o sistema de informações territoriais.
"Esse arranjo permite monitoramento contínuo por meio de indicadores territoriais, ambientais e hídricos. A regularização fundiária passa a depender diretamente da comprovação de capacidade hídrica, da adequação da drenagem, do esgotamento sanitário, da proteção das áreas de recarga e das medidas de adaptação climática. Nesse modelo, a avaliação do uso do solo é integrada às condições de saneamento e à disponibilidade de água, e a fiscalização territorial torna-se parte do monitoramento da política hídrica, consolidada tanto no capítulo de fiscalização quanto no capítulo de monitoramento do plano", informou a pasta.
Por fim, a Seduh ressaltou que o novo PDOT incorpora as mudanças climáticas por meio da Política de Resiliência Territorial, que orienta o planejamento do território para enfrentar estiagens, variações de disponibilidade hídrica e eventos extremos. "Essa política reúne um conjunto articulado de ações que incluem o mapeamento de áreas prioritárias para resiliência hídrica, a proteção das áreas de recarga, o incentivo à arborização e à implantação de infraestruturas verdes, o uso de soluções baseadas na natureza, o controle da impermeabilização, o fortalecimento da drenagem sustentável e a adoção de estratégias de redução do consumo e das perdas de água."
Para a secretaria, ao integrar medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas e reconhecer explicitamente os riscos de estiagem, desertificação e escassez hídrica, o plano estrutura um modelo de ocupação capaz de responder aos impactos climáticos presentes e futuros. "O território passa a ser planejado sob a lógica da resiliência hídrica e climática", finalizou a pasta.
Saiba Mais
O que é o PDOT
O Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) é a lei que define como o Distrito Federal pode crescer, ocupar o solo e organizar seu território. Ele estabelece onde pode haver expansão urbana, o que deve permanecer rural ou protegido, quais áreas podem receber infraestrutura, moradia, comércio e indústrias, e quais devem ser preservadas por razões ambientais, sociais ou de segurança hídrica. O PDOT orienta decisões públicas e privadas sobre licenciamento, regularização fundiária, transporte, habitação e uso da terra — funcionando como o "mapa oficial" do futuro de Brasília e das demais regiões administrativas.

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