Pesquisa

DF tem a maior desigualdade de renda do país, segundo levantamento do IBGE

Pesquisa aponta que 4,7% da população do DF vivia com até um quarto de salário mínimo per capita mensal em 2024. Mulheres pretas e pardas recebem as menores remunerações

Brancos ganhavam, em média, 2,4 vezes (R$ 7.757) mais do que a população de mulheres declaradas pretas ou pardas (R$ 3.170) -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
Brancos ganhavam, em média, 2,4 vezes (R$ 7.757) mais do que a população de mulheres declaradas pretas ou pardas (R$ 3.170) - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

A todo momento, Tayana Silva, 34 anos, é tomada por uma preocupação diferente: conseguir um emprego, garantir a alimentação dos quatro filhos... Para trabalhar, no entanto, é preciso pensar em quem ficará com as crianças, já que três delas são neurodivergentes. Também por isso, como não se inquietar com a falta de medicamentos para a família? A conta não fecha. 

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No Distrito Federal, essa realidade é mais comum do que se imagina: a capital tem a maior desigualdade de renda do país, de acordo com a pesquisa da Síntese de Indicadores Sociais, divulgada no início de dezembro, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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Conforme o estudo, baseado no ano de 2024, o índice Gini, criado pelo matemático italiano Conrado Gini e um dos principais indicadores para avaliar as desigualdades na distribuição de rendimentos, é de 0,547 no DF. O valor é maior do que a média nacional, de 0,504, e supera a taxa da região Centro-Oeste, que chegou a 0,485.

O índice vai de 0 a 1 e quanto mais perto de 1, maior é a desigualdade. Quando se desconsidera os benefícios de programas sociais governamentais, o índice Gini do DF vai para 0,566, evidenciando o aumento na concentração de renda. Ao mesmo tempo, a pesquisa mostra que a capital mantém o maior rendimento médio do país (R$ 4.889). 

Ana Maria Nogales, demógrafa e professora de estatística da Universidade de Brasília (UnB), explica que o fato de o DF ter a maior renda média do país não o impede de liderar o ranking de desigualdade. Segundo a pesquisadora, a média é puxada para cima por um grupo pequeno, muito bem remunerado, enquanto grande parte da população vive com rendimentos baixos. "A renda média é influenciada por valores extremos. Aqui temos pessoas que ganham muito e pessoas que ganham muito pouco", explica.

Mesmo recebendo auxílio governamental, Tayana não consegue suprir as necessidades da casa, pois grande parte do dinheiro vai para as medicações dos filhos. "Recebo R$ 1.518, mas gasto entre R$ 800 e R$ 900 com os remédios. Então, não é uma renda compatível. Para a alimentação, dependo do (programa Cartão) Prato Cheio, porque nessas condições (mãe solo com dois filhos com transtorno do espectro autista e um com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade), tenho dificuldade em sair para trabalhar", relata a mulher, que mora em uma casa, cedida pela sogra, no Sol Nascente. Antes, ela vivia em uma pequena extensão dentro do lote que, devido a uma tempestade, desabou, levando a família a se abrigar na casa ainda em construção. 

Diferentes carências fazem parte da realidade de Tayana Silva, moradora do Sol Nascente
Diferentes carências fazem parte da realidade de Tayana Silva, moradora do Sol Nascente (foto: Laíza Ribeiro/CB/DA Press)

'Bolsões de pobreza'

A desigualdade no DF é estrutural e remonta à própria concepção de Brasília, conforme destaca a professora Ana Maria Nogales. Na ocasião, separaram-se trabalhadores qualificados — concentrados no Plano Piloto e em regiões centrais — daqueles que vieram para a construção e para trabalhar na área de serviços, muitos de baixa escolaridade. "Brasília promoveu, desde o início, uma segregação socioespacial. Essa divisão histórica resultou em um mercado de trabalho altamente desigual, no qual parte significativa da população permanece em empregos precários e com poucas oportunidades de mobilidade social", reforça a mestre e doutora em demografia.

O economista e sociólogo César Bergo avalia que a própria concepção urbanística e geográfica de Brasília contribuiu para fixar desigualdades. "O Plano Piloto foi projetado para 500 mil habitantes, mas essa estratégia foi abandonada com o tempo", afirma. O tamanho reduzido do território, somado ao tombamento, limita, segundo ele, a instalação de indústrias ou de atividades econômicas diversificadas. "Por outro lado, a presença dos poderes da República e de grandes bancos, associados ao serviço público, eleva a renda de parte da população, criando contrastes acentuados com as regiões administrativas", diz.

A pesquisa do IBGE avaliou, ainda, a distribuição por classes de salário mínimo e apontou que 4,7% da população do DF, em 2024, vivia com até um quarto de salário mínimo per capita mensal; e 16,3%, com até meio salário mínimo per capita. As proporções estão abaixo do observado em 2012, quando era maior a concentração de pessoas em ambos os contextos, 6,3% e 22,2%, respectivamente. Em relação à população ocupada, o rendimento-hora médio do trabalho principal era de R$ 30,80, sendo de R$ 51,60 para os de ensino superior completo e de R$ 13,60 para os sem instrução ou com ensino fundamental incompleto. 

Apesar de trabalhar diariamente vendendo acessórios para celular em paradas de ônibus e dentro dos coletivos, Erique Lohan, 32, vive com a renda instável da atividade informal e depende da aposentadoria dos avós, com quem mora, para cobrir as despesas da casa. “Minha renda depende muito de como foram as vendas. Teve mês que consegui R$ 600, vendendo todos os dias e acordando bem cedo, mas também já consegui mais de R$ 1 mil”, conta. O valor total que entra na residência — cerca de R$ 3 mil, somando sua renda e as duas aposentadorias — é rapidamente consumido por gastos com cuidadora, remédios, água, luz e alimentação.

O morador de Santa Maria iniciou uma faculdade de engenharia, mas abandonou o curso para cuidar da avó, diagnosticada com Alzheimer. Além disso, não faltam barreiras para conseguir emprego formal, dificuldade que atribui ao racismo e à falta de recursos para comprar roupas consideradas adequadas para entrevistas. “A maior dificuldade é conseguir trabalho, pois o preconceito está muito enraizado. Eu mando currículo, vou às entrevistas, mas, por ser preto e não ter roupas mais formais, acho que já me julgam como inapropriado”, desabafa.

Diferentes carências fazem parte da realidade de Tayana Silva, moradora do Sol Nascente
4,7% da população do DF, em 2024, vivia com até um quarto de salário mínimo per capita mensal (foto: Laíza Ribeiro/CB/DA Press)

Gênero e raça

"Houve época em que eu abria a geladeira e não tinha o que comer. Sentir fome é horrível, mas imagina a dor de não ter como alimentar os filhos?". O desabafo de Maria Josefa, 67 anos, remete ao período da pandemia de covid-19, quando foi obrigada a interromper os serviços de diarista por medo de carregar o vírus para dentro de casa. O cenário melhorou e ela retornou ao trabalho, porém a dificuldade para fechar as contas no fim do mês é uma constante. "Se meus filhos mais velhos não ajudarem, não consigo sequer de pagar o aluguel", afirma a moradora do Gama, que cuida de uma filha com síndrome de Down e tem nos medicamentos seus maiores gastos. 

Sem renda fixa, a diarista, que é uma mulher parda, costuma trabalhar seis dias por semana e recebe cerca de R$ 1,2 mil por mês, valor dividido entre o aluguel e o tratamento da filha, dependente de um colírio de R$ 150. Josefa não concluiu os estudos, mas afirma ter feito questão de que "seus meninos" se formassem e tivessem condições melhores do que as dela. Um deles trabalha como eletricista. 

“Os cargos de maior prestígio, sobretudo na administração pública federal, são ocupados por homens brancos, enquanto as mulheres pretas e pardas ficam concentradas em atividades de cuidado e serviços domésticos, de menor remuneração e destaque. Mesmo quando possuem escolaridade maior, muitas enfrentam barreiras para alcançar melhores posições no mercado de trabalho", assinala a demógrafa Ana Maria Nogales.

Os dados confirmam: em 2024, os brancos ganhavam, em média, 2,4 vezes (R$ 7.757) mais do que a população de mulheres declaradas pretas ou pardas (R$ 3.170). Entre os 10% com menores rendimentos, constavam 27% de brancos e 71,6% de pretos ou pardos. Por outro lado, ao se considerar os 10% com maiores rendimentos, a situação se inverte: 66,0% eram brancos e 33,4% eram pretos ou pardos. Essa concentração de renda também foi observada nos anos anteriores.

Nesse contexto de desigualdade de renda, Bergo defende que somente a educação pode melhorar as perspectivas da população, ponderando que, a curto prazo, o DF precisa fortalecer transporte, assistência social, infraestrutura urbana e habitação, aproveitando recursos do Fundo Constitucional.

Ações integradas

secretária de Desenvolvimento Social (Sedes/DF), Ana Paula Marra, acredita que reduzir desigualdades exige ações integradas e destaca que o Governo do Distrito Federal tem ampliado a presença do Estado em áreas vulneráveis. “O GDF tem investido não somente nas pessoas, criando benefícios como o Cartão Prato Cheio, mas, também, onde elas moram”, diz. Ela cita o Sol Nascente como exemplo dessa transformação, com saneamento básico, creches, restaurante comunitário e terminal rodoviário.

Segundo a pasta, os investimentos em desenvolvimento social triplicaram nos últimos sete anos, com a ampliação de equipamentos como o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Centros de Convivência (Cecon) e Restaurantes Comunitários. Outras medidas, como a redução do valor das refeições nesses locais, com três refeições diárias e atendimento aos domingos e feriados, além da gratuidade para pessoas em situação de rua, são citadas pela Sedes.

A secretária lembra, também, a ampliação do Cadastro Único, a expansão do Cartão Prato Cheio e o aumento das vagas de acolhimento, o que permitiu criar o Hotel Social. “Não foi à toa que conquistamos prêmios nacionais, como o Selo Betinho de combate à fome e o primeiro lugar em sustentabilidade social do país. Foi resultado de muito trabalho para a população mais vulnerável”, afirma Ana Paula Marra. 

Sobrevivência

Para compreender a desigualdade revelada pelo IBGE, é fundamental olhar para a segregação territorial entre o Plano Piloto e as periferias. O valor do solo nas áreas centrais, tombadas como patrimônio mundial, é tão elevado que praticamente exclui as famílias de baixa renda. Para viver no Plano Piloto, é preciso ter renda muito alta.

Nas periferias, por sua vez, a qualidade urbana é muito inferior: falta vegetação, as construções são precárias, as calçadas ruins, há poeira, alagamentos e serviços públicos de baixa qualidade. Isso mantém a desigualdade no território e reforça a distância social entre os grupos.

Quando analisamos o aumento do índice de Gini ao retirar os benefícios sociais, percebemos a centralidade das políticas públicas no enfrentamento dessa desigualdade, que cresce quando se desconsideram as políticas de transferência de renda. Esses programas garantem sobrevivência e alguma mobilidade, mas estão longe de resolver o problema estrutural.

Precisamos de investimentos pesados em educação pública, especialmente na educação infantil e nas escolas das áreas mais vulneráveis; de maior assistência estudantil; de políticas de inserção produtiva; e de melhorias significativas na infraestrutura urbana. O Estado ainda tem muito a fazer para reduzir essas desigualdades.

Ana Maria Nogales é demógrafa, professora de estatística da UnB e mestre e doutora em demografia. Integra o Observa DF, organização sem fins lucrativos que avalia os serviços públicos na capital federal

Número da desigualdade  

Desequilíbrio de renda segundo o índice Gini

  • DF: 0,547
  • Média nacional: 0,504
  • Centro-Oeste: 0,485.
  • Quanto mais perto de 1, maior é a desigualdade. 
  • Brancos ganham 2,4 vezes (R$ 7.757) mais do que as mulheres declaradas pretas ou pardas (R$ 3.170).
  • 4,7% da população do DF vive com até um quarto de salário mínimo per capita mensal; e 16,3%, com até meio salário mínimo per capita.

Fonte: IBGE

 

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postado em 11/12/2025 05:00 / atualizado em 11/12/2025 10:00
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