Por Manuela Sá* — O corpo, além de meio para interagir com o mundo, pode ser ponto de partida para entender emoções e aprender novas formas de se relacionar com o outro. É o que propõe o projeto Escuta de Si, do coletivo CorpoConsciente, que levou música e dança à Penitenciária Feminina do Distrito Federal, no Gama, também conhecida como Colmeia. Com oficinas toda sexta-feira, sessenta detentas foram convidadas a se movimentarem e a entrarem em contato com os próprios sentimentos durante três meses.
Realizada com fomento do Fundo de Apoio à Cultura (FAC-DF), a proposta foi idealizada pelas psicólogas Clara Costa e Thaís Germano, ambas de 39 anos. O objetivo era, por meio de movimentos livres, respiração, alongamentos conscientes, cirandas, rodas de escuta e autorregulação, ajudar as mulheres da penitenciária a entenderem o que estavam sentindo e providenciar as ferramentas para que elas conseguissem agir.
Segundo Thaís, a reconexão corporal é fundamental, sobretudo em ambientes de privação de liberdade. “É muito fácil se prender ao plano das ideias e da imaginação e esquecer que habita um corpo. Mas há poder em estar presente”, afirma. Ela defende que essas ferramentas são necessárias para mulheres que vivem em penitenciárias, onde o corpo é muito controlado.
Desde o início do programa, Thaís notou o alto engajamento das mulheres com as atividades, algo incomum. Ela conta que as detentas passaram por um processo de alfabetização somática, abordagem que usa o movimento do corpo e a percepção sensorial para desenvolver outros conhecimentos. Para muitas das participantes, foi uma descoberta transformadora.
De acordo com Thaís, uma detenta relatou ter utilizado uma das técnicas aprendidas para conseguir dormir em uma noite difícil. O alongamento foi o da borboleta, que consiste em juntar as solas dos pés e deixar os joelhos caírem para os lados. Trata-se de uma prática comum na Terapia de Redução de Estresse (TRE), que reúne exercícios para induzir tremores como forma de descarregar a tensão.
Clara ficou feliz com o resultado dos encontros na promoção de bem-estar e saúde. Ela diz notar a diferença na linguagem corporal das mulheres. “No início, era possível perceber que elas estavam com o corpo retraído. Após 15 semanas seguidas de trabalho, estavam mais tranquilas, com os ombros relaxados e o peito aberto.”
Ela acrescenta que as detentas agradeceram às idealizadoras com a composição de uma música e a entrega de uma carta. A letra, criada por um a mulher e um homem trans, inclui o nome das psicólogas e de técnicas aprendidas. Como homenagem, outra participante também coreografou e apresentou uma dança ao som de Dona de Mim, de Iza.
Desafio
A psicóloga da Secretária de Saúde (SES-DF) Aline Xavier, 38, atuou como ponte entre a instituição e o coletivo. Segundo ela, atividades como o projeto Escuta de Si são fundamentais para essas mulheres, especialmente diante do alto número de tentativas de suicídio e crises de ansiedade no sistema prisional. “Essas mulheres são carentes de tudo. A cadeia piora significativamente a saúde mental de qualquer pessoa”, constata a profissional, que trabalha na Unidade Básica de Saúde (UBS) da Penitenciária Feminina do DF.
Para enfrentar as dificuldades, Aline faz intervenção de crises e acompanhamento individual e em grupo. No entanto, uma limitação é que as detentas não podem procurar atividades terapêuticas como fazem pessoas em liberdade. Ela explica que é comum os pacientes irem atrás de exercícios físicos, como yoga, para aliviar a tensão, opção que não está disponível na penitenciária.
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Nesse contexto, o Escuta de Si entra como uma maneira de providenciar mais instrumentos com os quais as mulheres possam trabalhar: “As oficinas deram uma importante ferramenta para as detentas lidarem com as emoções: o próprio corpo”, comenta Aline.
Saúde mental
O projeto integra o coletivo CorpoConsciente, criado em 2016 com a proposta de utilizar práticas de consciência corporal e dança como forma de cuidar da saúde mental. A metodologia parte da escuta do corpo e da adaptação dos movimentos às necessidades individuais de cada participante. A ideia de fazer um grupo para realizar oficinas com esse método foi elaborada por Thaís, em parceria com uma amiga, quando ela morava no Rio de Janeiro, a partir de interesses de pesquisa semelhantes. Após se mudar para Brasília, ela retomou esse tipo de trabalho ao lado de Clara, fundando o CorpoConsciente na capital. Desde então, mais quatro psicólogos se juntaram ao coletivo.
Essa não foi a primeira vez que o grupo levou oficinas para uma instituição. Em 2023, o coletivo atuou no Centro de Ensino Fundamental Doutora Zilda Arnes, no Itapoã, com alunas adolescentes. Thaís recorda que a recepção da iniciativa por esse público foi diferente. A psicóloga relata que os jovens demonstraram maior resistência às atividades propostas. Ela atribuí o comportamento ao fato de a adolescência ser um período em que o corpo grita, o que faz atividades desse tipo serem ainda mais essenciais.
Com o desenvolvimento dos encontros, no entanto, a resistência inicial deu lugar a um maior engajamento. “O desabrochar do processo de autoconhecimento é lindo de se ver", avalia Thaís. Satisfeitas com os resultados das oficinas tanto na escola quanto na penitenciária, Clara e Thaís pretendem repetir a experiência no próximo ano. Para tanto, têm mantido o diálogo com a SES-DF e ficado de olho nos editais do FAC.
*Estagiária sob supervisão de Malcia Afonso
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