Pandemia

Vacinação pulverizada "fragiliza o controle da epidemia", diz médico

Coordenador da Sala de Situação da UnB, o epidemiologista Jonas Brant comentou a decisão do TRF3 de liberar comerciários de Campinas para a imunização de seus associados fora do calendário nacional

Jéssica Gotlib
postado em 06/04/2021 16:59 / atualizado em 06/04/2021 17:35
Processo de judicialização das vacinas foi gerado por uma lacuna deixada pelo governo federal, diz epidemiologista -  (crédito: AFP / Mauro PIMENTEL)
Processo de judicialização das vacinas foi gerado por uma lacuna deixada pelo governo federal, diz epidemiologista - (crédito: AFP / Mauro PIMENTEL)

A Justiça Federal concedeu, nesta terça-feira (6/4), uma liminar que concede ao Sindicato dos Empregados no Comércio de Campinas a compra de pelo menos 500 mil doses de vacinas contra covid-19 para uso fora do Plano Nacional de Imunização (PNI). A entidade pretende imunizar filiados e familiares deles e teve parecer favorável do desembargador Johonsom Di Salvo, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3).

Essa não foi a primeira decisão do tipo tomada pelo Poder Judiciário. Na semana passada, uma decisão do juiz Ronaldo Valcir Spanholo, da 21ª Vara Federal do Distrito Federal, autorizou compra de 6,6 mil doses de imunizantes a refinaria Refit. Pertencente ao advogado Ricardo Magro, a empresa tem capital aberto na bolsa de valores de São Paulo.

Em entrevista ao Correio, o epidemiologista e coordenador da Sala de Situação da Universidade de Brasília (UnB), o professor Jonas Brant, diz que a recorrência de iniciativas assim é perigosa. "A pulverização da campanha com diferentes atores fragiliza muito o controle da epidemia", afirmou o professor. Isso porque, segundo ele, a escolha deixa de se basear em um critério de risco de morte ou exposição, para atender a um critério de renda, sob pena de deteriorar ainda mais o quadro geral do país em relação à covid-19.

"Não é um cenário onde eu tenho vacina à vontade, é um cenário onde esse é um recurso escasso, onde a priorização ética deveria ser mais importante do que a priorização econômica. Senão, a gente vai acabar criando inequidades e, no contexto de controle de uma epidemia para conter essa transmissão, a inequidade atua como um fator determinante da piora do quadro", detalhou.

De acordo com o professor, isso ocorreria porque são justamente as pessoas com menos capacidade aquisitiva que se encontram mais expostas a contrair o vírus. "Em geral, as pessoas que estão em maior risco são as que têm maior vulnerabilidade e a gente já tem visto isso na transmissão agora. A mortalidade é muito maior nas periferias, e acaba que é nesses lugares que o vírus encontra condições ideais para se manter transmitindo e com maior probabilidade de mutação, inclusive com escape da vacinação”, explicou.

Quanto mais, melhor?

O principal embasamento das decisões judiciais até aqui é o argumento de que quanto mais pessoas vacinadas, melhor para todo o país. Entretanto, essa seria uma falsa equivalência, segundo o epidemiologista.

“Esse entendimento não é válido justamente porque eu crio um acesso para pessoas que talvez tenham menos risco de se infectar. O acesso passa a ser por poder econômico e não por risco. Então, eu não tenho um critério epidemiológico, técnico de risco, nem ético para definir quem recebe a vacina primeiro e, sim, um critério de quem tem mais dinheiro se protege primeiro. Aí eu crio condições para que o vírus mude, para que piore a situação, mate mais gente e, além disso, eu descoordeno a capacidade de resposta”, argumentou.

Decisão do TRF3 determina que "o excedente seja doado" ao Ministério da Saúde para integrar o plano de imunização brasileiro
Decisão do TRF3 determina que "o excedente seja doado" ao Ministério da Saúde para integrar o plano de imunização brasileiro (foto: Reprodução/TV Justiça)

Competição

Além do problema de racionalização do enfrentamento ao coronavírus, a entrada das empresas no mercado de imunizantes traz outro risco: o aumento da disputa pela substância que já está escassa no mundo. "O setor privado se torna um competidor que acaba tendo mais poder financeiro em alguns cenários e fazendo com que os estados tenham mais dificuldade no acesso às vacinas", informou.

Brant lembrou que essa seria uma dificuldade imposta não apenas ao Brasil, mas a outros países — fator que poderia piorar ainda mais a forma como o país é visto no exterior desde o início da pandemia. "O Brasil não tem uma responsabilidade somente com o Brasil, mas tem uma responsabilidade com o mundo na negociação das patentes, no acesso às vacinas e nessas relações comerciais no mundo todo. Ao abrir essa possibilidade para a iniciativa privada, o país está fragilizando o acesso para ele, mas para outros países também que podem ter, com isso, dificuldade de aquisição da vacina.”

Plano unificado é a única saída

Outros países também adotam critérios de prioridade, seja por faixa etária, seja por grau de risco de exposição à covid-19. Entretanto, para o epidemiologista isso precisa ser feito a partir do Plano Nacional de Imunização, o único que seria capaz de dar uma resposta coordenada para o problema.

"No cenário ideal, a gente deveria ter um comitê de coordenação dessa resposta. O Judiciário faria parte desse processo justamente para evitar essa avalanche de processos judiciais que, em geral, dificultam o avançar de uma resposta a uma emergência de saúde pública", exemplificou.

Para ele, esses problemas são decorrentes do vazio provocado pela atuação do governo federal no combate à pandemia. "Ao mesmo tempo, nós temos aí um cenário onde o governo federal, que deveria ser quem centraliza a liderança desse processo, não ocupa esse espaço e nós não temos conseguido tensionar o debate de maneira que o governo federal assuma a responsabilidade imposta dentro do pacto federativo", concluiu.

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