ESTUDO

Pesquisa mostra que vírus do sarampo se espalha no cérebro

Cientistas norte-americanos estudaram as alterações no material genético para identificar a propagação da infecção e seus efeitos no organismo

Infecção cerebral causada pela doença não tem cura e pode ser letal, mas é possível prevenir -  (crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Infecção cerebral causada pela doença não tem cura e pode ser letal, mas é possível prevenir - (crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
postado em 22/12/2023 06:00

Utilizando avançadas ferramentas de sequenciamento genético, cientistas da Clínica Mayo, nos Estados Unidos, conseguiram mapear minuciosamente a evolução do vírus do sarampo no cérebro de uma pessoa que morreu em decorrência de uma doença cerebral rara e fatal. O estudo, detalhado na revista PLOS Pathogens, alerta que novos casos da panencefalite esclerosante subaguda (PEES) podem surgir à medida que o sarampo avança entre os não vacinados.

A pesquisa, liderada pelo virologista Roberto Cattaneo, oferece dados sobre a mutação do RNA viral e sua propagação no órgão humano, nesse caso, o cérebro. "Nossas descobertas fornecem informações cruciais sobre como outros vírus podem persistir e se adaptar ao cérebro humano, resultando em doenças. Esse conhecimento é fundamental para o desenvolvimento de medicamentos antivirais eficazes", destacou ele, em comunicado.

O sarampo, uma das doenças mais contagiosas no mundo, ataca o trato respiratório superior, utilizando a traqueia como trampolim para se disseminar por meio de gotículas dispersas em tosses ou espirros de indivíduos infectados.

Cattaneo, pioneiro em estudos sobre a propagação do patógeno, iniciou suas pesquisas há cerca de quatro décadas, focando na panencefalite esclerosante subaguda (PEES), uma condição rara que se manifesta em aproximadamente 1 em cada 10 mil casos de sarampo. A infecção inicial pode levar de cinco a 10 anos para que o vírus do sarampo sofra mutação e atinja o cérebro, resultando em sintomas como perda de memória, convulsões e imobilidade.

Imunização

De acordo com Marina Mascarenhas Roriz Pedrosa, infectologista do hospital Encore, de Goiânia, a falta de imunização favorece a propagação do vírus e a sua circulação. "Todo vírus que circula livremente pode sofrer mutações porque encontra outros e pode trocar material genético. Então, indiretamente, a falta de vacinação favorece, sim, as mudanças nos patógenos."

O ressurgimento de surtos da condição devido à hesitação vacinal e às vacinações perdidas é evidente, com um aumento estimado de 18% nos casos e 43% nas mortes por sarampo em 2021, em comparação com 2020, em todo o mundo, conforme relatório recente do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Iris Yousaf, coautora e pós-doutoranda da Mayo Clinic, adverte que os casos de PEES podem aumentar novamente devido à falta de vacinação. Ela destaca a triste realidade de que essa doençapoderia ser evitável. A pesquisa, conduzida em colaboração com o CDC, examinou o cérebro de um indivíduo que contraiu sarampo na infância e desenvolveu PEES anos depois. Ao analisar 15 amostras de diferentes regiões cerebrais, os cientistas revelaram como o vírus mutou e se espalhou.

Os estudiosos identificaram que, após a entrada do patógeno no cérebro, seu genoma começou a mudar de forma prejudicial, replicando-se e gerando DNA com ligeiras diferenças. Esses genomas foram replicados várias vezes, criando uma população de variações genéticas. "Nessa população, dois genomas específicos tinham uma combinação de características que funcionaram em conjunto para promover a propagação do vírus desde o local inicial da infecção — o córtex frontal do cérebro — até colonizar todo o órgão", relataram os autores em nota.

Mariana Ramos, infectologista do Hospital Anchieta Ceilândia, parte do grupo Kora Saúde, detalha que, geralmente, o causador do sarampo vai invadir os sistemas respiratório e linfático, o fígado e a pele. "Em outros casos, um vírus mutado pode ser produzido com vantagens para entrada nas células do cérebro. Ele alterado tem as proteínas que permitem a saída de novas réplicas da célula com pouca funcionalidade, que ajuda o vírus a não ser combatido pelos anticorpos do hospedeiro, levando a uma infecção persistente e degenerativa do cérebro. Pode ter declínio cognitivo, mioclonia periódica, anormalidades na marcha, perda de visão e, até mesmo, chegar a um estado vegetativo."

A infectologista sublinha que é importante manter as investigações sobre a doença. "É importante conhecer toda a história do ciclo de replicação e transmissão do vírus para poder orientar as nossas pesquisas, a fim de evitar a doença e suas formas graves. Ter conhecimento nos leva a desenvolver profilaxias e tratamentos."

O Brasil

André Bon, infectologista do Hospital Brasília, da rede Dasa no Distrito Federal, frisa que a panencefalite esclerosante subaguda é uma doença letal e que a única prevenção é a vacina. "Os dados de cobertura da vacina tríplice viral, especialmente da primeira dose, apresentam uma queda alarmante ao longo dos anos. De 2018 para cá, tivemos uma diminuição importante, sendo a cobertura vacinal acima de 90% em 2018, e em 2023 chegando a cerca de 55%. Isso faz com que surja, então, um bolsão de pessoas suscetíveis à doença, especialmente crianças, as mais suscetíveis às formas graves de sarampo."

Conforme o médico, dados do Ministério da Saúde (MS) mostram que durante 2016 e 2017 não houve casos no Brasil, mas a partir de 2018 voltou a haver uma circulação relevante do vírus e em 2019, uma ascensão nos diagnósticos.

"Isso fez com que, de 2018 a 2022, a gente observasse um número muito alto de casos, mas agora, em 2023, segundo os dados atualizados e disponibilizados pelo MS, não houve nenhum episódio detectado. É importante dizer que a gente observou, nos últimos cinco anos, um aumento importante da circulação do vírus, e isso possivelmente está muito relacionado à redução significativa da cobertura vacinal nesse período."

Os próximos passos da pesquisa buscarão entender como mutações específicas favorecem a propagação do vírus no cérebro. Esses ensaios serão feitos em células cerebrais cultivadas e em aglomerados de células semelhantes ao cérebro, chamados organoides.

Para os cientistas, esse conhecimento pode ajudar na criação de medicamentos antivirais eficazes para combater a propagação do patógeno. A intervenção farmacológica em fases avançadas da doença ainda é um desafio e a prevenção da PEES por meio da vacinação contra o sarampo segue como o  método mais eficiente.

 

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