Em uma apresentação no 40º Congresso do Comitê Europeu para Tratamento e Pesquisa em Esclerose Múltipla (ECTRIMS 2024), na Dinamarca, pesquisadores revelaram a descoberta de biomarcadores críticos que têm o potencial de prever o agravamento da incapacidade de pacientes com diagnóstico de esclerose múltipla (EM). Para especialistas, o estudo, apresentado ontem, pode transformar as estratégias de tratamento para milhões de pessoas no mundo, abrindo caminho para planos de tratamento mais personalizados e eficazes.
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A esclerose múltipla é uma doença autoimune crônica que afeta o sistema nervoso central e leva a uma gama de incapacidades, impactando a qualidade de vida dos pacientes. Compreender como prever a progressão da condição tem sido o foco de muitos estudos. As descobertas prometem mudar o cenário do tratamento, permitindo que os profissionais de saúde adaptem suas abordagens com base nas necessidades individuais dos pacientes.
O estudo utilizou uma metodologia robusta, envolvendo uma análise abrangente de dados de pacientes ao longo de um período prolongado. O trabalho foi conduzido em 13 hospitais na Espanha e na Itália, liderado pelo cientista Enric Monreal, pesquisador do Hospital Universitário Ramón y Cajal, na Espanha, e primeiro autor do estudo.
A equipe analisou amostras de sangue de 725 pacientes com esclerose múltipla coletadas dentro de 12 meses do início da doença, usando a técnica Single Molecule Array (SIMOA). Eles descobriram que níveis elevados de cadeia leve do neurofilamento sérico (sNfL) — uma proteína que indica dano às células nervosas — no início da EM, podem prever tanto a piora associada à recaída (RAW) quanto a progressão independente da atividade de recaída (PIRA).
Os resultados indicaram que níveis mais altos de sNfL estão associados a um risco 45% maior de RAW e a um risco 43% maior de PIRA. Uma grande quantidade dos pacientes com níveis elevados de sNfL não responderam bem aos tratamentos modificadores da doença (DMTs) padrão, mas mostraram boa evolução com o uso de DMTs de alta eficácia, como Natalizumab, Alemtuzumab, Ocrelizumab, Rituximab e Ofatumumab.
"A identificação de sNfL e sGFAP como biomarcadores preditivos nos permite adaptar estratégias de tratamento para pacientes com EM de forma mais eficaz", frisou, em comunicado, Monreal. "Pacientes com baixos níveis de ambos os biomarcadores tiveram um bom prognóstico e puderam ser tratados com DMTs injetáveis ou orais. No entanto, altos níveis de sNfL indicam a necessidade de HE-DMTs para prevenir o agravamento da incapacidade, enquanto pacientes com altos níveis de sGFAP e baixos valores de sNfL podem exigir novas abordagens terapêuticas."
De acordo com o cientista, essas diferentes vias na doença têm implicações terapêuticas significativas, pois os DMTs atuais têm como alvo principal o sistema imunológico adaptativo periférico sem afetar a imunidade do sistema nervoso central. "Portanto, identificar pacientes com níveis mais altos de inflamação periférica é crucial para prevenir a incapacidade e melhorar os resultados dos pacientes."
Geovane Massa, neurologista e docente do Idomed Alagoinhas, na Bahia, pesquisador e autor do capítulo sobre EM do Tratado Brasileiro de Cannabis Medicinal, destaca que a EM afeta mais mulheres e costuma se manifestar entre 20 e 40 anos. Segundo o especialista, o diagnóstico é demorado. "Além dos sintomas clínicos, é necessário realizar uma ressonância magnética de cérebro e coluna pode ser necessário também exame de líquor — um fluido corporal que circunda o sistema nervoso central. Além disso, sempre devemos descartar outras possíveis doenças que causam sintomas similares."
Rafael Paternó, neurologista do Hospital Nove de Julho, em São Paulo, detalha que a investigação desses biomarcadores, que agora podem ser dosados no sangue e não só no líquor, torna uma avaliação seriada do paciente muito mais simples. "Esse estudo é a mais recente contribuição nessa construção de conhecimento. Estamos entendendo cada vez mais como podemos usar a dosagem de neurofilamento na tomada de decisão. No entanto, isso continua em fase de investigação. Outra coisa importante é entendermos que o uso desses marcadores não está amplamente disponível na prática clínica."
Segundo o autor principal, ao medir os níveis de sNfL e sGFAP no início da doença, a equipe conseguiu informações valiosas sobre os caminhos de progressão da EM, permitindo que os clínicos identifiquem os pacientes ideais para DMTs específicos. "Essa abordagem visa prevenir a incapacidade, evitando riscos desnecessários relacionados ao tratamento para aqueles com menor risco."
Atualmente, o tratamento da esclerose múltipla é amplamente padronizado, mas as diferenças nas respostas dos pacientes exige uma abordagem mais individualizada. Para os autores, os biomarcadores identificados no estudo podem ser valiosos para os profissionais de saúde que precisam tomar decisões informadas sobre as opções de terapêutica.
Thiago Nascimento, neurologista da Ebserh, em Sergipe, e membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), frisou que o uso de terapias personalizadas não é apenas uma tendência futura. "Mas uma necessidade imediata para melhorar a qualidade de vida dos pacientes com esclerose múltipla", disse. Segundo ele, entre os principais desafios estão disponibilidade e acessibilidade das novas tecnologias, como os testes avançados de biomarcadores. "Além disso, a capacitação da equipe médica e a criação de protocolos atualizados baseados em novas descobertas científicas ainda são áreas que precisam ser aprimoradas."
Saiba Mais
Três perguntas para: Igor Fonseca, neurologista da Interneuro e neurologista clínico pela Universidade Estadual de São Paulo
neurologista da Interneuro e neurologista clínico pela Universidade Estadual de São Paulo
Quais são os principais desafios na adoção de novas abordagens na prática clínica?
Em razão do perfil pleomórfico da doença, torna-se muito difícil categorizar em padrões, de modo objetivo, para que você consiga montar os estudos terapêuticos e de medicações, de forma rápida e individualizada. A doença é rara, por isso, é mais difícil de montar estudos clínicos baseados. Um grande desafio, também, é a disponibilidade das medicações para os estudos e para os pacientes, assim como a falta de disponibilidade dos (testes) biomarcadores e imagens avançadas.
Como a comunidade médica está respondendo a essas descobertas?
Sempre é empolgante ter novas ferramentas de diagnósticos. Porém, são necessários estudos mais robustos e da validação da real eficácia desses métodos, antes da prática clínica.
Como abordar as inovações com os pacientes?
É necessário discutir com o paciente essas mudanças. Muitos ficam animados e ansiosos por novas tecnologias que podem ajudá-los a ter uma vida normal, garantir sua funcionalidade, ou amenizar os sintomas. Mas a conversa deve ser sempre sincera, para saber se o paciente se inclui no grupo que os estudos contemplam e também a validade e força dessas pesquisas. Nem sempre existe uma evidência robusta para determinar a prática médica.
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