aquecimento global

Aumento da temperatura das águas ameaça espécies

Peixes e espécies conhecidas de organismos marinhos estão ameaçados pelo aumento da temperatura de oceanos, fenômeno que também afeta os rios. Mesmo os mais adaptados ao calor correm risco

Interação de peixes com as anêmonas está comprometida pelo branqueamento das Radianthus magnifica, processo associado às mudanças climáticas. 
Sem ter onde se esconder, os organismos tornam-se presas fáceis  -  (crédito: Morgan F. Bennett-Smith)
Interação de peixes com as anêmonas está comprometida pelo branqueamento das Radianthus magnifica, processo associado às mudanças climáticas. Sem ter onde se esconder, os organismos tornam-se presas fáceis  - (crédito: Morgan F. Bennett-Smith)

Cheio de peixes coloridos, anêmonas e corais, o mar está ameaçado. Pesquisas recentes evidenciam que o aquecimento e o desequilíbrio nas águas dos oceanos colocam em risco espécies conhecidas, como o peixe-palhaço e sua casa, a anêmona. O cenário, que também afeta os rios, é ainda mais preocupante, pois animais adaptados às altas temperaturas também estão sumindo.

Pesquisadores da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, avaliaram os efeitos do aquecimento do Mar Vermelho, no Oceano Índico, cuja temperatura, em períodos normais, chega a 32°C. Segundo os cientistas, no último triênio, as ondas de calor marinhas tornaram o ambiente cruel para a relação de dependência entre peixes-palhaço e anêmonas, colocando ambos em risco. 

Conforme a pesquisa, publicada na revista npj Biodiversity, a dupla é adaptada para trabalhar em conjunto na busca por nutrientes e proteção. As anêmonas também têm uma relação própria com uma alga chamada zooxantela, a mesma que se une aos corais. Assim como eles, os cnidários expelem as algas de seus tecidos quando está muito quente, causando o chamado branqueamento. Os cientistas notaram que esse fenômeno, quando prolongado, além de causar a morte da anêmona e do peixe-palhaço, desequilibra o ecossistema.

Parceria em risco

Segundo Morgan Bennett-Smith, doutorando da Universidade de Boston, e autor principal do artigo, sempre se espera que as anêmonas e os peixes-palhaço sobrevivam ao branqueamento, "como tem acontecido repetidamente nos últimos 10 anos". "Mas chegou a um ponto em que a situação se tornou extrema demais", diz. Conforme o cientista, para esse peixe, o adoecimento de sua casa é uma tragédia.

A equipe queria descobrir por que os peixes morrem após as anêmonas se tornarem brancas. A hipótese principal é que eles ficam mais visíveis, mas, além disso, os cientistas descobriram que o comportamento dos animais muda e mais indivíduos entram em conflito. 

"É especialmente doloroso porque o Mar Vermelho é um lugar que muitos pesquisadores esperavam e hipotetizaram ser um refúgio térmico", destacou Bennett-Smith, o que mostra que os organismos ali estariam protegidos dos impactos das mudanças climáticas devido à localização e às altas temperaturas. "O fato de até mesmo esse local estar entrando em colapso de diferentes maneiras é especialmente horrível. Ele não está se revelando o ambiente seguro que pensávamos."

Júlia Azevedo, bióloga, zoóloga e pesquisadora pela Universidade de Brasília (UnB), frisa que o aquecimento da água, a acidificação e os episódios de hipóxia estão entre os principais agentes de transformação da vida aquática. "Esses processos interferem no tamanho corporal, na taxa metabólica, modificam rotas migratórias e reestruturam comunidades inteiras, afetando desde espécies de interesse comercial, até peixes de recife e de água doce". Ela sublinha, ainda, que isso ocorre porque os animais respondem não apenas às mudanças físico-químicas do ambiente, mas também à alteração nas relações de competição, predação, parasitismo e disponibilidade de alimento.

Mesmo espécies altamente adaptadas a ambientes quentes e secos estão sob ameaça. Cientistas da Universidade de Buffalo, nos Estados Unidos, analisaram dados de quatro décadas de 1,5 mil riachos na América e na Austrália, revelando uma queda no número de espécies devido ao aumento da temperatura e à redução do fluxo hídrico.

"Se até os organismos mais adaptados não conseguem sobreviver nessas condições extremas, o cenário é ainda mais alarmante para aqueles habituados a climas mais amenos", alertou Corey Krabbenhoft, professor da Universidade de Buffalo. Segundo ele, esses organismos atuam como indicadores claros das mudanças climáticas. "Por isso, é fundamental entender completamente o que está por trás da perda de biodiversidade."

Água corrente

O estudo, publicado na revista Ecology and Evolution, ressalta que a água corrente é essencial para a saúde dos ecossistemas aquáticos. Ela conecta habitats, facilita o acesso ao alimento e à reprodução, além de garantir oxigenação e minimizar os efeitos de substâncias tóxicas. No entanto, algumas espécies conseguem sobreviver em ambientes intermitentes — os chamados peixes xéricos.

Segundo Artur Firmino, biólogo e doutorando na Universidade de Brasília, um exemplo brasileiro de peixes xéricos são os da família Rivulidae — conhecidos como peixes temporários, das nuvens ou peixes-rei. "Esses animais vivem, em sua maioria, em lagoas e brejos temporários, altamente dependentes do regime de chuvas. Com a redução das precipitações e o uso intensivo da água para irrigação, diversas espécies desse grupo estão entre as mais ameaçadas no país."

Firmino ressalta que, para mitigar os efeitos das mudanças climáticas — especialmente o aquecimento das águas —, é essencial proteger e restaurar a vegetação nativa das margens. "Mais do que isso, é necessária a implementação de políticas públicas de gestão e conservação que reduzam os conflitos pelo uso da terra e da água em regiões ecologicamente sensíveis."

 

Adaptação em foco

Ao longo das eras, diferentes espécies evoluíram de formas variadas para garantir sua sobrevivência. Investigar esse processo pode ser uma alternativa para conter o declínio dos ecossistemas aquáticos. Cientistas da Universidade de Michigan (UM) identificaram, em um peixe com 310 milhões de anos, o primeiro exemplo de um aparelho dentado — mecanismo semelhante a uma língua — usado para morder. No período em que viveu, esse tipo de organismo passou a utilizar os ossos branquiais para aprimorar a alimentação, mudança que pode ter contribuído para a longevidade evolutiva até os dias atuais.

O Platysomus viveu numa época em que os chamados peixes de nadadeiras raiadas exploravam novas estratégias de sobrevivência, incluindo alterações nos hábitos alimentares. O paleontólogo Matt Friedman, da Universidade de Michigan, integrou a equipe responsável por descobrir que esse animal tinha uma placa de dentes suspensa por ossos articulados — os mesmos que sustentavam as brânquias respiratórias.

A estrutura dentária, posicionada no assoalho da boca e semelhante a uma língua, alinhava-se diretamente a uma formação equivalente localizada no céu da cavidade oral. Segundo o artigo, publicado na revista Biology Letters, o peixe utilizava essa adaptação para triturar alimentos. 

O Platysomus foi o primeiro a desenvolver esse tipo de mordedura lingual. "Uma das formas mais eficazes de compreender a evolução é observar os processos de adaptação. É possível perceber como diferentes organismos podem atender às mesmas demandas evolutivas por caminhos distintos", afirmou Friedman.

Estudar para o futuro

Para Fabrício Escarlate, professor de ciências biológicas no Centro Universitário Ceub, em Brasília, entender o processo evolutivo dos peixes é fundamental para antecipar como eles podem reagir às transformações do ambiente. "Essas mudanças vão muito além das variações de temperatura, abrangendo alterações no regime de chuvas, secas prolongadas, inundações severas e modificações nas propriedades físico-químicas da água." Segundo ele, tais fatores podem causar tanto a extinção de algumas espécies quanto o favorecimento de outras.

O docente acrescenta que investigar como os peixes se ajustaram ao longo de sua trajetória evolutiva permite prever quais espécies têm maior chance de resistir às mudanças e quais são mais suscetíveis. "Esse tipo de conhecimento é estratégico não apenas para fins de conservação, mas também para garantir a segurança alimentar, uma vez que muitos desses organismos fazem parte da base da nossa dieta."

Embora os Platysomus tenham sido extintos, outras espécies desenvolveram mecanismos parecidos. Atualmente, os peixes com estrutura de mordedura mais próxima à da espécie são os bonefish, habitantes de águas tropicais e subtropicais, que se alimentam principalmente de presas com cascas duras, como caranguejos.

De acordo com Friedman, um dos principais objetivos da biologia evolutiva é compreender como diferentes mudanças ocorrem ao longo do tempo em diversos organismos. "Observar como grupos distintos desenvolveram soluções parecidas para desafios equivalentes — como a ingestão de alimentos duros — pode ajudar a esclarecer se esses trajetos evolutivos convergem de fato, ou se são somente coincidências adaptativas." (IA)

 

Palavra de especialista - Remediar a redução de espécies

“A resposta exige ações em duas frentes: mitigação e adaptação. No plano global, a redução das emissões de gases de efeito estufa é fundamental para frear o ritmo do aquecimento. No plano local, é necessário restaurar vegetação ripária, proteger nascentes, reduzir a poluição e garantir a conectividade dos rios, para que os peixes tenham alternativas de refúgio e deslocamento em momentos de estresse térmico ou hídrico. Nas zonas costeiras e marinhas, a criação e gestão eficaz de áreas protegidas, a restauração de recifes e manguezais e o controle da sobrepesca e de espécies invasoras são estratégias prioritárias. O cenário brasileiro é marcado por contrastes: enquanto a Amazônia ainda abriga grandes rios relativamente preservados, no Cerrado, na Caatinga e na Mata Atlântica, os impactos das mudanças climáticas se somam ao desmatamento, ao barramento de rios e ao uso intensivo da água, tornando as populações de peixes muito mais vulneráveis. O país tem instrumentos técnicos e legais para lidar com o problema, como o Livro Vermelho da Fauna Brasileira e as listas de espécies ameaçadas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), mas a efetividade depende da implementação de políticas públicas integradas de conservação, gestão hídrica e ação climática.”

Vitor Sena, biólogo e mestre em ecologia

 

 

 

 

 

 

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postado em 28/09/2025 00:01 / atualizado em 29/09/2025 17:44
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