
O medicamento tirzepatida, originalmente desenvolvido para o tratamento do diabetes tipo 2 e usado para emagrecimento, pode ter mais uma função, acreditam cientistas. Um estudo de caso da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, publicado ontem na revista Nature Medicine, revelou que o remédio suprime a sinalização no "centro de recompensa" do cérebro temporariamente, podendo ser um aliado no combate à compulsão alimentar.
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Os comportamentos alimentares, incluindo a compulsão, são regulados por circuitos cerebrais que envolvem o hipotálamo e os centros de recompensa, como o núcleo accumbens (NAc). O NAc regula o sistema de motivação no cérebro e orienta as decisões relacionadas à busca de prazer e ao controle de impulsos. Pesquisas anteriores demonstraram que, em pessoas com obesidade e compulsão alimentar periódica (TCAP), condições frequentemente observadas em conjunto, a sinalização do NAc e seus circuitos estão desregulados.
Mesmo sem o diagnóstico de transtorno, até 60% das pessoas com obesidade relatam ter "ruído alimentar", ou seja, pensar constantemente em comida, o que leva a sofrimento e comportamentos desregulados, como perda de controle e compulsão. O ruído também é comum no tratamento de questões como bulimia e anorexia nervosa.
Estímulo elétrico
No novo ensaio clínico, com quatro participantes inscritos, eletrodos de eletroencefalograma intracraniana (EEGi) foram implantados no cérebro de pessoas com obesidade e perda de controle alimentar. Nesse caso, o dispositivo registrou a atividade elétrica no núcleo accumbens (NAc) enquanto os participantes entram em contato com alimentos que normalmente desencadeiam episódios de compulsão alimentar.
A equipe então programou os eletrodos para fornecer estimulação elétrica de alta frequência ao NAc sempre que os sinais associados ao desejo intenso ocorrerem. Durante seis meses, os participantes relataram reduções acentuadas em seus sentimentos de perda de controle e na frequência de seus episódios de compulsão alimentar.
A chamada "Participante 3", que já tinha realizado todos os tipos de tratamento para obesidade, foi inscrita no ensaio e passou a utilizar tirzepatida para ajudar a controlar o diabetes tipo 2 antes da cirurgia. Isso proporcionou aos pesquisadores uma oportunidade rara de observar como o medicamento afeta os sinais cerebrais relacionados ao comportamento alimentar em tempo real.
Após a implantação dos eletrodos e a Participante 3 atingir a dose completa de tirzepatida, ela relatou ausência de preocupação com a comida, e sua atividade no núcleo accumbens (NAc) estava silenciosa. No entanto, após um período de 5 meses, a atividade no NAc foi detectada, consistente com o esperado para alguém com obesidade, juntamente com relatos de intensa preocupação com a comida — sugerindo que os efeitos da tirzepatida sobre o transtorno comportamental dessa paciente foram temporários e que o "ruído alimentar" estava voltando a se manifestar. Os pesquisadores agora pensam em como fazer com que essa ajuda deixe de ser temporária, e passe a durar mais tempo.
Próximos passos
Em contraste, os participantes do estudo que não tomaram tirzepatida apresentaram a atividade elevada esperada no núcleo accumbens e episódios frequentes de preocupação com a comida, consistentes com o que era previsto. Os resultados apresentados pela Participante 3 sugerem que a medicação foi responsável pela redução temporária do ruído alimentar.
Verônica El Afiouni, endocrinologista da clínica online INKI e professora do Centro Universitário Cruzeiro do Sul, em São Paulo, uma das hipóteses para o efeito passageiro do tirzepatida é que, com o uso contínuo, pode ocorrer a neuroadaptação ou dessensibilização dos receptores GLP-1 e GIP. "Em outras palavras, o cérebro pode se acostumar com a presença constante do medicamento e buscar formas de restaurar o equilíbrio, levando a uma diminuição gradual da eficácia sobre esses circuitos específicos do controle de impulsos. É como se ao longo do tempo encontrasse um "desvio" para reativar as vias de recompensa ligadas à comida."
"Embora este estudo tenha apresentado dados de apenas uma pessoa que tomou tirzepatida, ele fornece dados convincentes sobre como os inibidores de GLP-1 e GIP alteram os sinais elétricos no cérebro", frisou a coautora principal Wonkyung Choi, candidata a doutorado no laboratório de Halpern.
Conforme Lucas Cruz, neurologista dos hospitais Anchieta e Regional de Taguatinga, em Brasília, ainda é necessário saber quanto do efeito observado vem da ação direta no cérebro e quanto depende somente da maior saciedade. "Também faltam dados de longo prazo sobre estabilidade da resposta, possíveis adaptações do organismo e se esses remédios tratam a compulsão ou apenas reduzem o peso."
Cruz destacou que outra questão para o futuro é descobrir quem responde melhor e como combinar o uso dessas medicações com terapia e mudanças de hábito. "Avanços virão de estudos que juntem dados clínicos, neuroimagem e acompanhamento contínuo."
Saiba Mais
Duas perguntas para
Thiago Taya, neurologista e neuroimunologista do Hospital Brasília Águas Claras, da Rede Américas
Como a estimulação elétrica do cérebro pode ajudar pessoas que perdem o controle ao comer?
A estimulação elétrica de determinadas regiões cerebrais mediante implante de eletrodos por via neurocirúrgica pode ser sim uma via terapêutica, uma opção de tratamento para estes transtornos compulsivos, como no implante de estimulação cerebral profunda, mas estas opções não são a primeira linha de tratamento por serem invasivas. A ideia é modular regiões cerebrais envolvidas nestas vias de recompensa, prazer e motivação, para reduzir a chance de desregulação e assegurar o equilíbrio entre apetite, recompensa e controle inibitório, ou seja, mantendo o controle do paciente sobre sua tomada de decisões para agir menos impulsivamente.
O que ainda é necessário descobrir para saber se medicamentos como os inibidores de GLP-1 e GIP podem realmente ajudar no tratamento da compulsão alimentar?
Precisamos de mais estudos robustos, bem controlados e com uma boa quantidade de pacientes para entendermos melhor como essa classe de medicações interage com a dinâmica cerebral. Mas já temos bastante indício que interferem nas vias de recompensa, prazer e motivação, sim, reduzindo a liberação de dopamina no núcleo accumbens, tornando o ato de comer algo não tão atrativo ou viciante, mas o que precisamos saber melhor é como exatamente eles atuam para desempenhar esta função, como manter esta ação por tempo mais prolongado, como o cérebro se adapta a esta modulação medicamentosa ao longo do tempo, justamente para podermos atuar nesta sinfonia metabólico-cerebral futuramente de maneira cada vez mais assertiva.

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