
Orlando — Uma dor na região das costelas enquanto andava de bicicleta foi o primeiro sinal de que o mieloma múltiplo havia cruzado o caminho de Nícia Dalfré. Era 2018, e a paulistana, à época com 60 anos, estava de férias. Ela ignorou o desconforto. Como a dor foi "apertando" ao longo das semanas, ela recorreu a médicos de diferentes especialidades e ouviu de um neurologista que os ossos fracos detectados nos exames não correspondiam a sua idade cronológica. "Eu tinha também uma vértebra quebrada. Era o carnaval de 2019, e ele decidiu me internar para descobrir o que estava acontecendo", conta. O diagnóstico veio cerca de 15 dias depois, mas as dúvidas persistiram. "Ou me explicaram mais ou menos o que era, ou não entendi. Achei que era uma coisinha, que estava tudo certo. A ficha caiu mesmo quando comecei a fazer o tratamento."
Nícia foi submetida a quimioterapia, transplante de medula óssea e injeções regulares de medicamentos, sempre acompanhados por uma característica desafiante do mieloma múltiplo. Incurável, a doença vai avançando ao longo do tempo, oscilando entre períodos de estabilidade e latência. A cada etapa, as complicações se agravam e as opções terapêuticas se afunilam, culminando em elevada taxa de mortalidade — no Brasil, metade dos pacientes perdem a vida até cinco anos depois da descoberta da doença. Mudar esse cenário com tecnologias de ponta tem motivado cientistas de diferentes partes do mundo — incluindo brasileiros —, que apresentaram resultados de pesquisas promissoras na reunião anual da Sociedade Americana de Hematologia (ASH, na sigla em inglês), em Orlando, nos Estados Unidos, que acabou ontem.
Um deles é o que permite a Nícia voltar a fazer planos. Desde 2022, a agora aposentada faz parte do protocolo de pesquisa do MajesTEC-3, que combina o uso de imunoterapias avançadas já na segunda linha de tratamento do mieloma múltiplo. Resultados da fase 3 do estudo, apresentados ontem, mostram que a combinação do anticorpo biespecífico teclistamabe e o anticorpo monoclonal daratumumabe permitiu que 83% dos pacientes estivessem há três anos sem sinais de progressão da doença, contra 29% dos submetidos ao tratamento padrão. A diferença da sobrevida global também é grande: 17% dos que receberam a nova abordagem morreram ao longo dos 36 meses, contra 35% do grupo controle.
Assim como Nícia, os outros 586 participantes entraram no estudo quando a doença havia se agravado, depois de, em média, dois tratamentos. Vânia Hungria, uma das autoras do estudo e diretora médica da Fundação Internacional do Mieloma (IMF, pela sigla em inglês), chama a atenção para o fato de o grupo controle também ter recebido uma terapia de ponta. "Por isso, subimos o patamar tremendamente. O paciente recaído recebeu o tratamento cujos resultados podem ser até melhores do que quando ele fez o primeiro tratamento. Isso não era comum na hematologia", justifica.
A brasileira, referência internacional na doença, conta que, quando começou a trabalhar com mieloma, os pacientes morriam em dois, três anos. "Neste século, porque as coisas melhoraram muito rápido, a gente começa a falar em cura, aumento de sobrevida global. Antes, há 40 anos, era tratamento paliativo. Hoje, há uma resposta tão profunda que há pacientes vivendo por mais de 10 anos." Em razão dos resultados do Majestic 3 — publicados também na revista The New England Journal of Medicine —, a Johnson & Johnson, que financia os estudos, entrou com o pedido em órgãos reguladores para a autorização do uso da nova abordagem. A FDA, nos Estados Unidos (FDA), e a Anvisa, no Brasil, analisam as solicitações.
Sem transplante
Também pesquisador na área, Edvan Crusoé, chefe do serviço de Hematologia e Hemoterapia do Hospital Universitário da Universidade Federal da Bahia (UFBA), avalia que os avanços na hematologia oncológica nos últimos anos são tão significativos que é possível falar na construção de um novo paradigma para a especialidade médica, cogitando, inclusive, o fim da adoção de procedimentos tradicionais. "Paciente com doença incurável tem mais sobrevida, quem iria viver um ano agora vive cinco anos. É uma mudança de chave mesmo. Se você coloca essas inovações em primeira linha, há a possibilidade de o paciente não sentir mais nada", detalha.
Outro estudo apresentado no ASH 2026, liderado na Faculdade de Medicina Miller da Universidade de Miami, também ilustra bem essa perspectiva. Nesse caso, analisa-se o fim do transplante autólogo de medula óssea para alguns pacientes. Dezoito voluntários receberam até seis ciclos de tratamento com o anticorpo linvoseltamab e não precisaram ser submetidos ao procedimento. Segundo Dickran Kazandjian, pesquisador principal, 90% do tumor foi eliminado dos pacientes após a adoção do "tratamento inicial moderno e eficaz".
"Prevejo que, após uma resposta tão positiva em tão pouco tempo, a doença provavelmente poderá ficar sob controle por muitos anos", afirma Kazandjian, em nota.
Os cientistas trabalham, agora, no recrutamento de um grupo maior de voluntários, 50 pessoas, para dar continuidade às investigações e não hesitam em falar que caminham para uma cura funcional da doença. "É uma afirmação ousada, mas precisamos mirar nas estrelas para fazer o campo avançar; é isso que estamos tentando fazer", ressalta Kazandjian.
*A jornalista viajou a convite da Johnson & Johnson
Impulso da engenharia genética
A engenharia genética também é uma das frentes que têm permitido a pesquisadores, médicos e pacientes avançar no enfrentamento ao mieloma múltiplo. Nesse caso, são utilizadas as próprias células T, de defesa, do paciente, que são coletadas, modificadas em laboratório para reconhecer o mieloma, multiplicadas e reinfundidas no organismo. Estudos têm mostrado que apenas uma aplicação do medicamento é capaz de levar a respostas prolongadas.
No caso do mieloma múltiplo, um estudo apresentado na reunião deste ano da Sociedade Americana de Hematologia (ASH, na sigla em inglês) mostra remissão duradoura da doença em dois anos e meio entre pacientes que já haviam sofrido recidiva do câncer. Ao menos 80% dos voluntários permaneceram livres de progressão e de tratamento após uma única infusão já na segunda linha do tratamento. Participaram do estudo 176 pessoas, sendo que 99% eram refratárias à última linha de tratamento recebida.
Na avaliação de Luciano Costa, autor do estudo e diretor do programa de mieloma múltiplo da Universidade do Alabama em Birmingham, trata-se de mais um resultado que aproxima a ciência da cura funcional do mieloma. “Não temos ainda um seguimento longo de acompanhamento. Mas começa-se a definir uma população de risco convencional da doença, tratada precocemente, sem detecção do mieloma e com risco de progressão baixo”, justifica.
A terapia Car-T é aprovada para uso do tratamento do mieloma no Brasil desde 2022, sendo a Johson & Johnson a única empresa com aval para realizar o procedimento. Há 19 centros de coleta no Brasil, e a modificação genética das células de defesa é feita nos Estados Unidos. A expectativa é de que, com o avanço da tecnologia, ela se torne mais acessível. “É uma terapia muito complexa, requer centros especializados, mas o acesso no Brasil está melhorando, até pela atuação da comunidade de pacientes, do trabalho de advocay, das indústrias e principalmente dos médicos”, avalia Luciano Costa.
A possibilidade de institutos de pesquisas brasileiros passarem a ter a própria tecnologia — o Hospital Israelita Albert Einstein, a Fiocruz e a Unifesp desenvolvem pesquisas nesse sentido — torna esse cenário ainda mais possível, segundo Luciano. O cientista, que é brasileiro, é otimista quanto ao futuro do procedimento e do combate ao mieloma.” Ao trazer uma terapia altamente efetiva, você consegue transformar a história natural da doença. Tenho certeza de que este é só o primeiro capítulo”.
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Impulso da engenharia genética
A engenharia genética também é uma das frentes que têm permitido a pesquisadores, médicos e pacientes avançar no enfrentamento ao mieloma múltiplo. Nesse caso, são utilizadas as próprias células T, de defesa, do paciente, que são coletadas, modificadas em laboratório para reconhecer o mieloma, multiplicadas e reinfundidas no organismo. Estudos têm mostrado que apenas uma aplicação do medicamento é capaz de levar a respostas prolongadas.
No caso do mieloma múltiplo, um estudo apresentado na reunião deste ano da Sociedade Americana de Hematologia (ASH, na sigla em inglês) mostra remissão duradoura da doença em dois anos e meio entre pacientes que já haviam sofrido recidiva do câncer. Ao menos 80% dos voluntários permaneceram livres de progressão e de tratamento após uma única infusão já na segunda linha do tratamento. Participaram do estudo 176 pessoas, sendo que 99% eram refratárias à última linha de tratamento recebida.
Na avaliação de Luciano Costa, autor do estudo e diretor do programa de mieloma múltiplo da Universidade do Alabama em Birmingham, trata-se de mais um resultado que aproxima a ciência da cura funcional do mieloma. "Não temos ainda um seguimento longo de acompanhamento. Mas começa-se a definir uma população de risco convencional da doença, tratada precocemente, sem detecção do mieloma e com risco de progressão baixo", justifica.
A terapia Car-T é aprovada para uso do tratamento do mieloma no Brasil desde 2022, sendo a Johson & Johnson a única empresa com aval para realizar o procedimento. Há 19 centros de coleta no Brasil, e a modificação genética das células de defesa é feita nos Estados Unidos. A expectativa é de que, com o avanço da tecnologia, ela se torne mais acessível. "É uma terapia muito complexa, requer centros especializados, mas o acesso no Brasil está melhorando, até pela atuação da comunidade de pacientes, do trabalho de advocay, das indústrias e principalmente dos médicos", avalia Luciano Costa.
A possibilidade de institutos de pesquisas brasileiros passarem a ter a própria tecnologia — o Hospital Israelita Albert Einstein, a Fiocruz e a Unifesp desenvolvem pesquisas nesse sentido — torna esse cenário ainda mais possível, segundo Luciano. O cientista, que é brasileiro, é otimista quanto ao futuro do procedimento e do combate ao mieloma." Ao trazer uma terapia altamente efetiva, você consegue transformar a história natural da doença. Tenho certeza de que este é só o primeiro capítulo". (CS)

Ciência e Saúde
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