Marco da evolução humana, a produção intencional do fogo — evento fundamental para o desenvolvimento do cérebro, o avanço tecnológico e a origem das civilizações — já ocorria há 400 mil anos, segundo um estudo publicado na revista Nature. Os pesquisadores afirmam que o sítio arqueológico de Barnham, no leste da Inglaterra, tem "sinais claros e inequívocos" da manipulação desse recurso natural, antecipando em 350 mil anos o surgimento de uma das mais importantes habilidades dos hominídeos.
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Para chegar a essa conclusão, os cientistas avaliaram uma vasta quantidade de artefatos que, segundo eles, evidenciam o aquecimento repetido de sedimentos, objetos de sílex alterados pelo calor e fragmentos do mineral pirita, usado historicamente para produzir faíscas. O conjunto sugere que os hominídeos do período não apenas utilizavam fogo natural, mas eram capazes de fabricá-lo sempre que precisavam.
Os autores da façanha não foram ancestrais do homem moderno, que não sairia da África até 100 mil anos atrás. Provavelmente, eram "parentes" diretos dos neandertais, espécie que viveu e desapareceu na Europa. "As pessoas que fizeram fogo em Barnham há 400 mil anos provavelmente eram neandertais primitivos, com base na morfologia de fósseis da mesma idade encontrados em Swanscombe, Kent e Atapuerca, na Espanha, que inclusive preservam DNA neandertal primitivo", esclareceu Chris Stringer, pesquisador do Museu de História Natural de Londres e principal pesquisador, em uma coletiva de imprensa on-line.
Dieta
O uso do fogo é considerado um divisor de águas na evolução humana, associado a mudanças na dieta, proteção contra predadores, convivência social, aquecimento e até transformações fisiológicas relacionadas ao crescimento do cérebro. Mas determinar quando a habilidade emergiu sempre foi um desafio para a arqueologia. Embora existam diversas demonstrações de que, há centenas de milhares de anos, o homem se valia das fogueiras para diversos fins, até agora só se tinha certeza de que ele era capaz de "fazer a luz" quando queria, e não apenas quando aproveitava os incêndios naturais, 50 mil anos atrás.
O novo estudo combina análises arqueológicas, geoquímicas e ambientais para sustentar a interpretação de que os materiais encontrados em Barnham foram aquecidos localmente por combustão controlada e repetida, indicando não apenas uso, mas manutenção de fogueiras e eventual produção intencional de chamas. "As implicações são enormes. A habilidade de criar e controlar o fogo é um dos principais pontos de virada na história humana, com muitos benefícios sociais e práticos que mudaram a evolução do homem", comentou Rob Davis, arqueólogo do Museu Britânico e coautor do estudo.
O sítio de Barnham foi escavado entre 1989 e 1994 e os artefatos descobertos no local seguem sendo estudados. Em camadas atribuídas ao intervalo interglacial MIS 11, quando a Terra estava mais quente e em processo de degelo, os pesquisadores identificaram manchas de sedimento avermelhado, resultado da transformação mineral causada por fogo intenso, e objetos líticos com claras evidências de aquecimento. Também foram encontrados fragmentos de pirita associados a áreas com acúmulo de materiais queimados.
Local
A análise microscópica dos artefatos mostrou que o aquecimento ocorreu no próprio local, e não por processos naturais posteriores. Estudos com espectroscopia infravermelha indicaram temperaturas que chegaram a ultrapassar 750°C em alguns pontos, algo difícil de ser explicado apenas por incêndios naturais.
Já a análise de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos revelou padrões característicos de combustão local de madeira, distintos de sinais típicos de incêndios regionais. Para os pesquisadores, a repetição do aquecimento e a localização dos vestígios apontam para atividade humana continuada, como fogueiras reacendidas ou mantidas ao longo do tempo.
O artigo destaca ainda a presença de dois fragmentos de pirita em áreas próximas ao material queimado. Essa pedra, quando friccionada com força com certos tipos de sílex, produz faíscas capazes de iniciar fogueiras. O mineral é conhecido historicamente por esse uso em diferentes culturas humanas. "É incrível que alguns dos grupos mais antigos de neandertais tivessem conhecimento das propriedades do sílex e da pirita em uma data tão remota", comentou Nick Ashton, curador de Coleções Paleolíticas do Museu Britânico e coautor do artigo. "Essa é a descoberta mais notável da minha carreira", revelou, na coletiva.
Ashton destacou que a pirita não é comum na região de Barnham, segundo levantamentos geológicos. Isso sugere que o material teria sido transportado até ali, uma evidência adicional de que os hominídeos conheciam suas propriedades e integraram o mineral ao "kit fogo".
Transição
O período em que Barnham foi ocupado coincide com uma fase de transição importante da evolução humana, entre 500 mil e 300 mil anos, associada ao aumento gradual do tamanho cerebral e à emergência de comportamentos mais complexos. Segundo os pesquisadores, a capacidade de fazer fogo fornecia vantagens sociais e alimentares, possibilitando cozinhar carnes e, assim, aproveitar melhor proteínas, além de reduzir a energia digestiva e ampliar a disponibilidade de alimentos.
A manutenção de fogueiras também teria favorecido o desenvolvimento de espaços sociais iluminados. Isso ajudou a consolidar interações coletivas e divisão de tarefas, aspectos cada vez mais valorizados na discussão sobre a evolução do comportamento dos primeiros hominídeos.
Há registros de uso de fogo em diferentes sítios antigos na Europa e na África, mas a distinção entre queimadas naturais e fogueiras humanas é complexa. Em muitos casos, indícios de aquecimento estão associados a materiais orgânicos misturados, processos geológicos ou ambientes cavernosos que favorecem a preservação do fogo, mas não permitem concluir a produção deliberada das chamas.
Segundo o estudo, Barnham se destaca justamente por apresentar um conjunto de evidências convergentes — sedimentos queimados, ferramentas fraturadas pelo calor, pirita, presença de madeira queimada e sinais de repetição dos eventos. Para os autores, trata-se da demonstração mais robusta de que grupos pré-Homo sapiens dominavam técnicas de produção de fogo muito antes do que se pensava.
Evidências sólidas — por Andreu Ollé Cañellas, pesquisadordo Instituto Catalão de PaleoecologiaHumana e Evolução Social (IphesCerca), na Espanha:
Esse é um estudo relevante porque fornece evidências sólidas de um aspecto crucial da evolução humana, a saber, o controle do fogo. Para a arqueologia paleolítica, propõe um conjunto sólido de análises a serem reproduzidas em outros contextos onde foram detectadas evidências da presença de fogo.
O estudo apresenta várias linhas desta evidência, juntamente com análises multidisciplinares e complementares. Em primeiro lugar, a pesquisa se encaixa bem com as informações que já tínhamos em relação à Europa Ocidental.
Existem outros locais com cronologias semelhantes (como Menez-Dregan ou Terra Amata na França, a caverna de Aroeira em Portugal ou Cansaladeta em Tarragona) onde temos evidências do uso de fogo há cerca de 400 mil anos. No entanto, isso contrasta com a falta de evidências em outros locais bem documentados de cronologia semelhante, como Atapuerca.
A principal novidade do artigo é a proposta de que os fragmentos de pirita encontrados em Barnham, na Inglaterra, estão relacionados à produção intencional de fogo. Isso não foi observado nos outros locais. Portanto, com base nessa descoberta, a ideia de que por volta dessa data já tínhamos um uso estrutural do fogo é reforçada. É muito provável, como o artigo sugere, que a descoberta de Barnham nos mostre o início da domesticação do fogo, seu uso controlado e generalizado.
Em um nível pessoal, com base no que aprendi com arqueologia experimental e observações etnográficas, acredito que produzir fogo por atrito com materiais vegetais é mais fácil do que envolver interação com óxido de ferro, mas as evidências apresentadas no artigo são sólidas e devem ser levadas em consideração.
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