Entrevista

"A população tem direito à proteção", diz ministro Rogério Schietti

Schietti defende o respeito às leis no tratamento dos réus e investigados, sem violência, pré-julgamentos e preconceitos, sob pena de o Estado se igualar ao mundo do crime

 O ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Rogério Schietti Cruz. -  (crédito: Emerson Leal/STJ)
O ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Rogério Schietti Cruz. - (crédito: Emerson Leal/STJ)
postado em 29/02/2024 06:00 / atualizado em 29/02/2024 00:00

Conhecido pelas decisões que prestigiam os direitos humanos e o respeito aos investigados, o ministro Rogério Schietti Machado Cruz tem sido protagonista de mudanças na jurisprudência na área penal no Superior Tribunal de Justiça (STJ), como a que trata uma mulher trans com os benefícios da Lei Maria da Penha.

Schietti defende o respeito às leis no tratamento dos réus e investigados, sem violência, pré-julgamentos e preconceitos, sob pena de o Estado se igualar ao mundo do crime. No tema do momento no Congresso relacionado ao sistema penitenciário, o fim das chamadas "saidinhas", Schietti avalia que o progressivo contato do preso com o mundo externo é fundamental, desde que o benefício seja concedido a quem tem bom comportamento e com controle dos atos desses cidadãos fora da prisão.

O devido processo legal, ressalta Schietti, é fundamental. E o ministro lamenta que atropelos, como os ocorridos na Lava-Jato, acabem causando a impunidade de corruptos e outros criminosos.

Com o aumento da violência, congressistas defendem a redução de alguns benefícios para presos, como o fim das saídas temporárias. Como avalia essa possível mudança?

A comunidade jurídica e os estudiosos indicam como necessário, para a ressocialização do preso, o progressivo contato com o mundo externo. Isso pode ser feito por meio do trabalho ou estudo e eventualmente com permissões para que o interno visite seus familiares em datas festivas. É importante frisar que somente fazem jus a esse benefício os presos que cumprem pena em regime semiaberto e que tenham um bom comportamento carcerário. E não se pode ignorar o fato de que somente alguns poucos dos beneficiados pelas "saidinhas" cometem delitos enquanto soltos ou mesmo não retornam voluntariamente ao presídio para cumprir o restante de suas penas. Por outro lado, a população tem o direito de ser protegida e não pode ser exposta ao risco de novos crimes. Seria preciso então encontrar um meio-termo que considere ambos os lados.

Qual é a solução?

Uma das possibilidades seria monitorar eletronicamente todos os movimentos do preso fora do presídio, impondo-lhe a permanência no local onde ele indicar que pode ser encontrado e impedindo que frequente lugares que lhe são vedados, como bares e casas noturnas.

Como defensor da dignidade no tratamento a suspeitos, quais de suas decisões foram mais emblemáticas?

Inocente, culpado ou meramente suspeito, todos merecem ser tratados com respeito e dignidade, mesmo quando são acusados de cometer um crime. Essa é a característica da civilização, que pressupõe a prevalência da lei sobre a vontade dos homens. Não podemos — sobretudo nós que representamos o Estado (especialmente policiais, promotores e juízes) — agir de acordo com nossos instintos ou emoções, as quais são até compreensíveis para as vítimas das ações criminosas de terceiros. Se o Estado, por seus agentes, se iguala aos que cometem crimes, respondendo à violência com violência, à arbitrariedade com arbitrariedade, qual o sentido de existirem as leis? Elas são feitas apenas para os bondosos? E tratar com respeito e dignidade o preso ou o condenado não significa ser conivente ou tolerante com o que ele fez. Ele pode e deve ser punido com o rigor da lei. Mas devo assegurar, enquanto representante do Poder Público, que isso ocorra sem desvios, sem jeitinhos, sem abusos ou qualquer outro ato contrário ao que determina a Constituição e as leis do país. "O grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela maneira como trata seus prisioneiros", é um dito atribuído ao escritor e filósofo russo Fiódor Dostoiévski, e que me parece bem oportuno lembrar. Se queremos evoluir como civilização, devemos ser racionais no modo como respondemos aos crimes.

O STJ tem julgado seguindo normas que, às vezes, por impor tantas regras para preservar inocentes, acaba livrando criminosos. Esse é um preço que se paga para evitar abusos?

Não existe sociedade no mundo que puna todos os seus criminosos. Mas podemos, quem sabe um dia, ser um país onde poucos crimes sejam praticados e onde todos os autores desses delitos sejam punidos, mas sem atropelar a lei, sem agir como agem os que violam a lei. Há um pensamento de um juiz da Suprema Corte dos EUA, do início do Século XX, Louis Brandeis, que poderia ajudar na resposta à sua pergunta: "Em um governo de leis, a existência do governo estará em perigo se não observar escrupulosamente a lei. Nosso governo é o professor poderoso e onipresente. Para o bem ou para o mal, ensina todo o povo pelo seu exemplo. O crime é contagioso. Se o governo se torna um infrator da lei, gera desprezo pela lei; convida todo homem a se tornar uma lei para si mesmo; convida à anarquia".

É o que, no seu entendimento, ocorreu com a Operação Lava-Jato, livrando todos, inclusive os culpados, por excessos praticados?

Lamento muito mesmo o que ocorreu, tanto pelos excessos cometidos quanto pela impunidade de que resultou para alguns dos envolvidos. Infelizmente é o que acontece quando o Estado age sem observar as regras do jogo. Não se pode punir a qualquer preço, apenas porque a punição é merecida. Acho que houve ali um encantamento generalizado, não só dos agentes públicos envolvidos, mas da mídia também, por uma situação que se mostrou de uma gravidade ímpar e que exigia uma resposta dura e efetiva do Poder Público. Porém, houve desvios que, durante um tempo, foram negligenciados ou ocultos. Quando vieram à tona, o castelo desmoronou e parece que não só inocentes foram inocentados, mas culpados ficaram impunes.

Acredita que decisões, como a que exige motivação para buscas pessoais, ou autorização judicial para a polícia entrar na casa de suspeitos, têm mudado a conduta de policiais, com a redução dos abusos?

Espero que sim, embora a realidade nos mostre que ainda são frequentes os abusos cometidos contra a população das periferias. Os órgãos de segurança precisam reavaliar algumas de suas práticas. Queremos uma Polícia eficiente, que evite a prática de crimes e que bem investigue e indique os autores dos que não puderam ser evitados. Mas há regras e limites que precisam ser observados. Acabou de ser publicado um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrando a diferença de tratamento dos moradores das grandes cidades de acordo com sua condição social. Os resultados revelam que os bairros mais ricos e aqueles de população predominantemente branca são praticamente imunes às entradas em domicílio, as quais se concentram substancialmente nos bairros mais pobres e naqueles com população predominantemente negra. De 307 entradas em residências de moradores de grandes cidades, 84,7% ocorreram em bairros predominantemente ocupados por pessoas negras e 91,2% ocorreram em bairros com renda domiciliar mensal per capita de até um salário. E não houve um único registro de entrada domiciliar em bairros com renda superior a dez salários mínimos.

A Sexta Turma do STJ decidiu, com base em seu voto, que a Lei Maria da Penha deve proteger mulheres trans. Foi um avanço?

Creio que sim. Juízes e Tribunais, diante da falta de uma lei específica, não podem deixar sem proteção jurídica pessoas que, por sua orientação sexual ou por uma questão de gênero, acabam permanecendo indefesas e totalmente vulneráveis diante de violências de todo tipo. Uma mulher trans se identifica como mulher, se comporta como mulher e por isso merece o amparo da Lei Maria da Penha.

O senhor vai integrar comissão julgadora do Prêmio Innovare. Qual é a importância do prêmio?

O Prêmio Innovare é, na minha opinião, a iniciativa mais importante e auspiciosa que se instituiu nos últimos 20 anos. Ao incentivar projetos e práticas individuais e institucionais, na área da justiça (em suas várias categorias), o Innovare dá visibilidade às boas ações em prol da comunidade e multiplica essas iniciativas. Quem assiste às cerimônias de premiação não tem como não se emocionar de ver tanta coisa boa sendo feita pelo Brasil afora. O processo de seleção e dos participantes e de escolha das iniciativas vencedoras é cuidadoso e sério, e fazer parte dessa Comissão é motivo de orgulho para mim.

Poderia citar práticas inovadoras que contribuíram para o aprimoramento do sistema de Justiça brasileiro?

O Innovare premia práticas do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e de advogados que estejam contribuindo para a modernização, a democratização do acesso, a efetividade e a racionalização do Sistema Judicial Brasileiro. É até injusto, diante da quantidade enorme de boas iniciativas pelo Brasil, não somente as premiadas anualmente, citar apenas uma ou outra. Posso dizer que geralmente as práticas que costumam chamar mais a atenção são aquelas voltadas a permitir o acesso à justiça de segmentos vulnerabilizados da população, os quais, por serem mais invisíveis, reclamam um olhar mais atento dos profissionais do Direito.

Como tem sido seu trabalho como ouvidor do STJ? Quais as principais demandas têm chegado ao tribunal?

A função de ouvidor do STJ me permite ter uma dimensão mais concreta de que modo o Tribunal tem sido visto pela comunidade e, particularmente, pelos usuários dos nossos serviços. Das inúmeras sugestões, elogios e reclamações que recebemos, talvez a que mais nos preocupa é a relativa ao tempo de duração dos processos. Para um Tribunal que recebe e julga mais de 400 mil ações e recursos por ano, é muito difícil cumprir o comando constitucional que assegura a todos o julgamento dos processos em um prazo razoável. Tentamos explicar isso à população, mas é natural que todos desejem um Poder Judiciário ágil e efetivo no desempenho de sua missão principal de julgar as causas que lhes são confiadas.

Entre as suas muitas atribuições está a presidência da Comissão Gestora de Precedentes do STJ. Qual é seu desafio nesta função?

Essa pergunta tem direta relação com a anterior. Isso porque um sistema de justiça somente pode funcionar bem – tanto na justiça dos julgamentos quanto no tempo de duração dos processos – se todos os tribunais e juízes do país compreenderem a importância de se observar a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ), os quais são os responsáveis, em última análise, pela final interpretação da Constituição e das leis, respectivamente. Se uma mesma lei é aplicada de modo distinto, ante uma mesma realidade fática, todos irão perder. Perdem os Tribunais em geral, que, por falta de uniformidade e coerência dos entendimentos, serão sobrecarregados com mais ações e recursos, porque sempre haverá a chance de se encontrar um julgador que pense de modo diferente ao que já definiram as Cortes Superiores. E perdem os jurisdicionados, que enfrentarão a insegurança e a instabilidade dessas decisões judiciais, a tornar o resultado do processo uma loteria, cuja sorte ou azar dependerá de quem vier a julgar a ação ou o recurso da parte. A Comissão Gestora de Precedentes tem procurado, portanto, sensibilizar os colegas da magistratura no sentido de buscarem maior sintonia entre o que decide o STJ e o que decidem os demais órgãos de jurisdição do país.

Para contribuir com julgamentos mais rápidos e facilitar a compreensão dos textos jurídicos produzidos no seu gabinete, o senhor adotou diretrizes destinadas a simplificar a linguagem em votos e decisões. Por que tomou essa decisão e como será essa mudança?

Como eu escrevi recentemente, nós, juristas, fomos treinados para falar “bonito”, para usar linguagem rebuscada, para demonstrar erudição. Isso deve ser evitado quando desejamos nos comunicar melhor. Mas como simplificar a linguagem sem o risco de cair no extremo oposto, ou seja, na excessiva informalidade e na superficialidade no trato do tema abordado? É um equilíbrio difícil de alcançar. Fato é que, quando escrevemos algo, devemos pensar sempre em quem vai ler. Se escrevo apenas para juristas – por exemplo, em um artigo acadêmico a ser publicado em uma revista tradicional – posso usar todo o meu juridiquês e ser mais sofisticado. Se escrevo para um jornal a ser lido por leigos, devo me adaptar. E se produzo um voto ou decisão, tenho de tentar encontrar o ponto mediano, pois o texto será lido (ou ouvido) por um público misto. Preciso, enfim, não esquecer que “o caminho da cabeça para o papel é muito mais fácil do que o caminho do papel para a cabeça” (Schopenhauer).

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