Entrevista — Roberto Livianu

Mudança na Lei da Ficha Limpa seria "um escárnio para a sociedade", diz procurador

"Nessa iniciativa, é possível encontrar qualquer coisa, menos a defesa do interesse público. Estão legislando em causa própria, e isso em nada atende às necessidades da sociedade"

"A pena de inelegibilidade de oito anos representa o ponto central da Lei da Ficha Limpa" - (crédito: Arquivo pessoal)

Nos últimos dias, a Lei da Ficha Limpa voltou ao centro dos debates após o deputado federal Bibo Nunes (PL-RS) apresentar um projeto de lei que busca reduzir de oito para dois anos o período de inelegibilidade de políticos condenados.

Aprovada em 2010, a lei impede a candidatura de políticos condenados por crimes graves, como corrupção e abuso de poder econômico, fortalecendo a integridade do processo eleitoral. Além de ampliar os casos de inelegibilidade previstos na legislação de 1990, a norma determina que condenações em órgãos colegiados sejam suficientes para barrar candidaturas.

Para aprofundar o impacto das possíveis mudanças nessa legislação, o Correio entrevistou o procurador do Ministério Público de São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu. Confira a entrevista.

Como o senhor avalia as propostas de mudança na Lei da Ficha Limpa, reduzindo o tempo de inelegibilidade de oito anos para dois?

Uma catástrofe, um escárnio para a sociedade. A pena de inelegibilidade de oito anos representa o ponto central da Lei da Ficha Limpa. A ideia é tirar de circulação os maus políticos por esse tempo, a contar do trânsito em julgado da decisão condenatória. O período de oito anos corresponde a dois ciclos eleitorais. As eleições ocorrem a cada quatro anos, e a lógica da lei é manter o indivíduo afastado do cenário político por duas eleições consecutivas, garantindo um impacto efetivo da punição. Por mais que o presidente da Câmara afirme que as eleições ocorrem a cada dois anos, com todo respeito, isso não faz o menor sentido. Ele realmente quer sugerir ao povo brasileiro que figuras como o presidente Lula, o ex-presidente Bolsonaro ou o próprio Arthur Lira se candidatariam a vereador? Alguém acredita nisso? Essa ideia é absolutamente risível. É fundamental manter a honestidade nos argumentos. A pretensão é esmagar a lei da ficha limpa, porque dois anos de inelegibilidade é um nada. É como se estabelecesse para o crime de homicídio a pena de cesta básica. É uma pena inócua. Outra questão importante a ser destacada é que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi condenado pela Justiça a oito anos de inelegibilidade por abuso de poder político. A Justiça Eleitoral cumpriu seu papel e aplicou a condenação. O que se observa agora é um movimento do Poder Legislativo tentando diminuir a autoridade do Poder Judiciário para tornar letra morta uma decisão embasada no ordenamento jurídico. Isso é muito grave, é uma afronta à Constituição Federal e a um dos princípios mais caros e mais fundamentais: a separação dos poderes. Se isso for à frente, é possível questionar a constitucionalidade deste instrumento legislativo.

O senhor acredita que é casuísmo essa alteração na lei?

É claro que se trata de casuísmo. As leis devem ser elaboradas no interesse da sociedade. Os três poderes, especialmente o Executivo e o Legislativo, devem sempre pautar suas ações pelo princípio fundamental da prevalência do interesse público. No entanto, nessa iniciativa, é possível encontrar qualquer coisa, menos a defesa do interesse público. Estão legislando em causa própria, e isso em nada atende às necessidades da sociedade.

Há chance de o Congresso aprovar a medida?

A chance existe. Há não muito tempo, foi aprovada a maior anistia da história aos partidos políticos. Naquela ocasião, petistas e bolsonaristas se uniram em prol da impunidade, garantindo que violações e a não execução de ações afirmativas fossem anistiadas. Em outubro de 2021, vimos esse mesmo cenário se repetir. Partidos opostos novamente se aliaram para enfraquecer a Lei de Improbidade Administrativa. Em apenas oito minutos, aprovaram a urgência da votação. Quando a Lei 14.230/2021 foi sancionada, diversos congressistas que respondiam a ações de improbidade votaram a favor do projeto que os beneficiava. Alguns tinham até 40 processos em andamento e simplesmente apertaram o botão para se livrar deles. Inclusive, o próprio presidente da Câmara, Arthur Lira, respondia a uma ação de improbidade.

O ex-presidente Jair Bolsonaro afirma que a Lei da Ficha Limpa só vale para a direita e citou o caso da ex-presidente Dilma Rousseff que sofreu o impeachment e manteve a elegibilidade. Como avalia essa questão?

Ao longo do tempo, políticos de diversas ideologias — direita, centro e esquerda — tiveram seus direitos políticos restritos, cassados ou foram punidos com base na Lei da Ficha Limpa. Esse fato demonstra que a aplicação da legislação não é exclusiva a um único grupo. Se for feita uma análise mais aprofundada, fica evidente que esse argumento é completamente insustentável. Dizer que a lei está voltada para a direita, isso é inconsistente. Essa afirmação tem um caráter ignorante e infantil. Porque os elementos colocados na lei da ficha limpa são de natureza objetiva. Não existe isso de esquerda ou direita, se existe a condenação confirmada por um órgão colegiado, a pessoa sofre as consequências.

E a proposta de que a pena de oito anos valha a partir da condenação e não do trânsito em julgado da ação? O senhor acha justa?

A questão sobre o momento em que a pena deve ser cumprida já foi amplamente analisada e reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal em diversas ocasiões. Como mencionei, esse é o cerne da efetividade da Lei da Ficha Limpa. A inelegibilidade deve ser aplicada a partir do trânsito em julgado da condenação. Esse é o princípio essencial da Lei da Ficha Limpa, um mecanismo criado para garantir à sociedade um mínimo de depuração na política, impedindo a participação de candidatos condenados por corrupção e outros crimes graves. No entanto, há um movimento para enfraquecer essa filtragem, permitindo que indivíduos condenados permaneçam na cena política. O objetivo da lei é simples: retirar do processo eleitoral aqueles que já tiveram sua condenação confirmada, garantindo ao eleitor um mínimo de proteção em um país marcado por desigualdade educacional, concentração de renda e baixo desenvolvimento humano.

Apesar de sua importância, a Lei da Ficha Limpa tem sido alvo constante de tentativas de sabotagem. Nas eleições de 2014 para governos estaduais, por exemplo, essa prática ficou evidente em três estados: Mato Grosso, Roraima e Distrito Federal. Candidatos notoriamente inelegíveis — José Riva, Neudo Campos e José Roberto Arruda — receberam indevidamente legenda de seus partidos, mesmo sabendo que suas candidaturas seriam barradas pelo Tribunal Superior Eleitoral. A estratégia era clara: levar suas campanhas adiante até poucos dias antes da eleição, garantindo visibilidade e apoio popular, para então serem substituídos por suas esposas. No Distrito Federal e em Mato Grosso, a manobra não teve sucesso, mas em Roraima, Suely Campos foi eleita governadora. Esse tipo de prática não é apenas um desrespeito à legislação vigente, mas um verdadeiro engodo ao eleitor. Vale lembrar que a Lei da Ficha Limpa é uma das poucas normas em vigor no país oriundas de um projeto de iniciativa popular, fruto de um esforço coletivo que levou 14 anos para reunir as assinaturas necessárias. O desrespeito a essa lei é, portanto, o desrespeito à vontade da sociedade.

Há algo a mudar na Lei da Ficha Limpa? Alguma melhora?

Olha, eu acredito que as leis, em tese, sempre podem ser aperfeiçoadas. Mas não estamos falando de uma legislação em vigor há 40 anos. Trata-se de uma lei recente, que não apresenta sinais de obsolescência que justifiquem uma revisão urgente. Não é como o Código de Processo Penal, de 1940, que, por sua antiguidade, demanda atualizações. Essa lei está em vigor há apenas 15 anos, ou seja, ainda é relativamente nova e não se deteriorou com o tempo. O problema não está na lei em si, mas em uma tentativa oportunista e desajeitada de alterá-la, contrariando o interesse público para favorecer interesses obscuros, que vão na contramão do que realmente importa para a sociedade.

O Brasil passa por uma fase de retrocesso no combate à corrupção atualmente?

Sim, e isso não é de hoje. Houve uma evolução significativa no combate à corrupção ao longo dos anos: tivemos a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei de Acesso à Informação, a Lei das Estatais e a Lei da Delação Premiada – todas fundamentais para a transparência e a responsabilização. No entanto, o que temos visto recentemente é um retrocesso. Governo e oposição estão alinhados para enfraquecer o combate à corrupção, e isso é evidente. Basta analisar as decisões do Congresso nos últimos anos: que regra foi aprovada para fortalecer o enfrentamento à corrupção? Nenhuma. A Lei 14.230/2021, por exemplo, representa um verdadeiro retrocesso. Poucos meses antes de sua aprovação, o então líder do governo Bolsonaro, deputado Ricardo Barros, chegou a declarar à imprensa que o nepotismo seria um "modelo virtuoso de gestão". E, de fato, essa lei quase legalizou o nepotismo, permitindo sua prática de forma oficial. Isso demonstra claramente o rumo que está sendo tomado.

Na Operação Lava- Jato, vimos políticos condenados e presos por corrupção. Onde houve falhas neste caso?

A Operação Lava Jato, em seu início, teve um aspecto positivo, especialmente na colaboração entre o Ministério Público, a Receita Federal e a Polícia Federal. No entanto, a proximidade excessiva entre o Ministério Público e o magistrado Sérgio Moro gerou questionamentos legítimos. Os diálogos divulgados trouxeram dúvidas sobre a imparcialidade do processo. Embora não seja possível afirmar com absoluta certeza a autenticidade e a integralidade dessas conversas, o fato é que elas existiram, e isso, por si só, já representa um motivo de preocupação. Além disso, a relação próxima entre Moro e o Ministério Público, somada à sua posterior nomeação para o governo — cujo governante foi diretamente beneficiado pela decisão que tornou Lula inelegível —, teve um impacto extremamente negativo no combate à corrupção.

Essa escolha comprometeu a credibilidade do processo, levantando dúvidas sobre a imparcialidade da Justiça e enfraquecendo os esforços no combate à corrupção. Foi um grande retrocesso para a história da Lava Jato, que abalou a confiança na operação e colocou em risco boa parte do que havia sido construído até então.

Maria Eduarda Lavocat
postado em 13/02/2025 04:30
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