Visão do Direito

O Supremo e a mediação: transformando a Jurisdição Constitucional

O caráter analítico da Constituição de 1988 visa assegurar uma ampla proteção dos direitos e uma regulação precisa da organização do Estado, refletindo a história e o contexto do Brasil após a ditadura militar

 2025. Eixo Capital. Guilherme Veiga, doutorando pelo CEUB/DF. Mestre em direito. Especialista em direito constitucional internacional pela Universitá di Pisa, Itália. Advogado com atuação no STF e STJ -  (crédito:  Divulgação)
2025. Eixo Capital. Guilherme Veiga, doutorando pelo CEUB/DF. Mestre em direito. Especialista em direito constitucional internacional pela Universitá di Pisa, Itália. Advogado com atuação no STF e STJ - (crédito: Divulgação)

Guilherme Veiga*

A Constituição de 1988, conhecida como a "Constituição Cidadã", é frequentemente descrita como uma constituição analítica devido ao seu extenso e detalhado conteúdo. Ao contrário das constituições sintéticas, que apresentam princípios gerais e deixam maior margem de regulação para a legislação infraconstitucional, a Constituição de 1988 optou por incluir normas minuciosas e específicas sobre diversos temas.

O caráter analítico da Constituição de 1988 visa assegurar uma ampla proteção dos direitos e uma regulação precisa da organização do Estado, refletindo a história e o contexto do Brasil após a ditadura militar. A intenção era garantir que as novas conquistas democráticas estivessem firmemente protegidas por normas claras e de difícil alteração. Por outro lado, essa abordagem também traz desafios, como a necessidade constante de emendas para adaptar a Constituição às mudanças sociais e econômicas.

A correlação entre o caráter analítico da Constituição de 1988 e o número expressivo de legitimados para propor ações de controle abstrato de constitucionalidade reflete a preocupação do constituinte com a ampla proteção da ordem constitucional.

O artigo 103 da Constituição Federal enumera um rol diversificado de legitimados para propor ações de controle abstrato de constitucionalidade, como o presidente da República, as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, governadores de estado, o procurador-geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partidos políticos com representação no Congresso Nacional e confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.

Essa multiplicidade reflete uma maior abertura da jurisdição constitucional e, consequentemente, uma maior judicialização. A constitucionalização ampla dos direitos promovida pela Constituição de 1988 — que elevou a status constitucional diversos direitos sociais, econômicos, trabalhistas e ambientais — ampliou o leque de questões passíveis de serem judicializadas.

Como resultado, normas que antes eram reguladas por legislação ordinária passaram a ser protegidas constitucionalmente, aumentando as possibilidades de questionamentos quanto à sua adequação ou à sua implementação. Isso gera um número expressivo de ações que chegam ao STF, envolvendo desde a proteção de direitos fundamentais até a constitucionalidade de reformas tributárias, previdenciárias ou trabalhistas.

Portanto, a combinação de um número elevado de legitimados com a constitucionalização de direitos tem levado a um aumento substancial de ações de controle concentrado, transformando o STF em um ator central na interpretação e aplicação da Constituição.

O STF, além de seu papel tradicional como guardião da Constituição, tem assumido um papel relevante como mediador em questões constitucionais complexas, promovendo a autocomposição de demandas. Esse papel mediador do Supremo reflete a busca por soluções que não se limitem apenas à imposição de decisões judiciais de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, mas que possam gerar maior estabilidade e legitimidade deliberativa para os conflitos multifacetados de índole constitucional.

A atuação mediadora do STF tem sido especialmente relevante em casos de grande repercussão social ou política, em que há múltiplos interesses em jogo e em que uma decisão puramente judicial poderia gerar divisões ainda mais profundas. Nesses contextos, o Tribunal busca fomentar o diálogo entre as partes envolvidas, permitindo encontrar um consenso. Esse movimento reflete uma tendência de abertura do tribunal ao diálogo, tanto interno quanto com outros Poderes, e a uma abordagem mais colaborativa e menos adversarial.

Por exemplo, em temas, como políticas de saúde pública, como o Tema 1234, e até mesmo disputas federativas envolvendo estados e a União, como no caso da ADO 25, relacionada à compensação das perdas de arrecadação do ICMS decorrentes da Lei Kandir, o STF tem chamado as partes para dialogar e buscar acordos. Essa prática de autocomposição não substitui a decisão final do Tribunal, mas muitas vezes, contribui para encontrar soluções mais equilibradas e aceitas por todos, minimizando os conflitos e promovendo maior harmonia social.

O papel mediador do Supremo, assim, não se limita a resolver os conflitos em si, mas busca criar um ambiente de diálogo que fortaleça a legitimidade do Tribunal e a própria estabilidade institucional. A mediação nas cortes superiores tem se mostrado um instrumento valioso para promover a pacificação social, especialmente em um contexto de constitucionalização abrangente e de um número crescente de questões levadas ao Tribunal.

O caráter analítico da nossa Constituição, aliado à ampla legitimidade para o controle abstrato de constitucionalidade, confere à Suprema Corte um papel de protagonista na expansão da jurisdição constitucional. Nesse contexto, o STF não se limita a decidir casos de forma adversarial; sua atuação se expande ainda mais para o fortalecimento da democracia, promovendo um diálogo institucional essencial para a pacificação social e a estabilidade do país, marcado por múltiplos interesses e desafios.

Doutorando pelo Ceub/DF. Mestre em direito. Especialista em direito constitucionalinternacional pela Universitá di Pisa, Itália. Advogado com atuação no STF e STJ*

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Opinião
postado em 20/02/2025 06:00
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