Visão do Direito

Ives Gandra: O STF e o foro privilegiado

"No momento em que o Supremo Tribunal Federal criou uma hipótese que não consta da Constituição, é evidente que legislou — não como legislador ordinário, nem como legislador complementar, mas como legislador constituinte'

Jurista Ives Gandra Martins completa 90 anos -  (crédito: Divulgação)
Jurista Ives Gandra Martins completa 90 anos - (crédito: Divulgação)

Por Ives Gandra Martins* — "O Supremo, eleito por um homem só, não poderia alargar, como fez agora, sua competência para estender o foro privilegiado, até exteriorizando uma visão política bem acentuada, a fim de incluir pessoas que deveriam ser julgadas pelo juiz natural."

A mudança de jurisdição do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito ao foro privilegiado é o tema deste artigo.

Vale lembrar que o foro privilegiado foi criado para hipóteses bem definidas na Constituição. A principal razão para sua existência foi impedir que uma autoridade, no exercício de suas funções, pudesse ser, por exemplo, destituída de suas atividades por um juiz recém-concursado. Dessa forma, tornou-se uma garantia para que os representantes do povo não pudessem ser afastados por decisão de um magistrado de primeira instância.

Sempre se defendeu, no país, que o limite do foro privilegiado deveria ser restrito e sujeito exclusivamente ao que está disposto na Constituição e às hipóteses nela previstas. Em 2018, o Supremo reiterou essa jurisprudência, afirmando que, como intérprete da Constituição, o foro privilegiado deveria se restringir apenas ao que os constituintes inseriram na Carta Magna.

Contudo, em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal ampliou essa hipótese, não por determinação dos constituintes, mas por interpretação extensiva da Corte, alterando sua própria jurisprudência de 2018 para incluir pessoas que não deveriam estar sob sua jurisdição, contrariando aqueles que escreveram a Lei Suprema e que foram eleitos pelo povo.

Sempre reitero minha admiração pelos Ministros do Supremo como juristas e muitas vezes, me constrange ter que discordar. No entanto, nesse ponto, preciso divergir: quem escreve e elabora a Constituição não é o Supremo Tribunal Federal, e sim, aqueles que foram eleitos pelo povo, originalmente, para elaborá-la, bem como os constituintes derivados, por meio de emendas à Lei Maior.

No momento em que o Supremo Tribunal Federal criou uma hipótese que não consta da Constituição, é evidente que legislou — não como legislador ordinário, nem como legislador complementar, mas como legislador constituinte.

Nos Estados Unidos, que têm a mesma Constituição desde 1787, o saudoso justice da Suprema Corte, Antonin Scalia — grande figura e bom amigo —, sempre defendeu o originalismo constitucional, doutrina segundo a qual a Constituição deve ser interpretada com base no entendimento original do texto no momento de sua adoção. A Suprema Corte só pode decidir com base no que os constituintes escreveram e incorporaram na Constituição, pois isso reflete o desejo do povo.

O Supremo, nomeado por um único chefe do Executivo, com todo o respeito que tenho por todos os ministros, não poderia alargar, como fez agora, sua competência para estender o foro privilegiado, ainda mais ao exteriorizar uma visão política bem acentuada, a fim de incluir pessoas que deveriam ser julgadas pelo juiz natural.

De rigor, o Supremo é o intérprete da Constituição e não um constituinte derivado. Como participei de audiências públicas e mantive contato permanente com Ulysses Guimarães e Bernardo Cabral — com quem tenho inúmeros livros escritos e que foi o relator da Constituição —, permito-me, mais uma vez, com o devido respeito a todos os magistrados da Suprema Corte, divergir.

Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio -SP, ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp)*

Por Opinião
postado em 03/04/2025 04:40
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