Visão do Direito

Sigilo e o segredo: entre a República e a sombra

"A publicidade é a regra; o sigilo, a exceção. A imposição de sigilo a documentos públicos constitui questão jurídica que busca equilibrar o princípio da publicidade e a proteção de interesses públicos ou privados"

Luis Carlos Alcoforado e seu quinto livro de poesias, Escuridão do fim -  (crédito: Arquivo Pessoal)
Luis Carlos Alcoforado e seu quinto livro de poesias, Escuridão do fim - (crédito: Arquivo Pessoal)

Por Luis Carlos Alcoforado* — No âmago do Estado Democrático de Direito, reside o princípio da publicidade, como meio constitucional de assegurar o exercício do direito fundamental de acesso à informação. O princípio da publicidade está expressamente previsto na Constituição da República, como instrumento de fortalecimento da transparência dos fatos e atos que ocorrem no âmbito dos Poderes da República. Assegura-se, por conseguinte, o direito de acesso à informação, ressalvada a hipótese em que o sigilo se mostre imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

A publicidade é a regra; o sigilo, a exceção. A imposição de sigilo a documentos públicos constitui questão jurídica que busca equilibrar o princípio da publicidade — pilar do Estado Democrático de Direito — e a proteção de interesses públicos ou privados que justifiquem a restrição de acesso.

A Lei de Acesso à Informação (LAI), em seu art. 23, enumera taxativamente as situações que autorizam a classificação de sigilo, todas vinculadas à proteção de interesses públicos superiores, entre as quais se destacam: a) risco à defesa e soberania nacional ou à integridade territorial; b) prejuízo a negociações internacionais ou a informações sigilosas fornecidas por outros Estados; c) ameaça à vida, segurança ou saúde da população; d) risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do país; e) comprometimento de operações estratégicas das Forças Armadas; f) perigo à segurança de instituições ou altas autoridades e seus familiares; g) prejuízo a atividades de inteligência, investigação ou fiscalização.

Exige-se motivação para a imposição do sigilo, sob pena de nulidade, razão pela qual a autoridade competente carece de discricionariedade absoluta. A LAI estabelece três graus de sigilo, com prazos máximos inarredáveis (art. 24): a) ultrassecreto: 25 anos, renovável uma única vez por igual período (máximo de 50 anos); b) secreto: 15 anos, sem renovação; c) reservado: cinco anos, sem renovação.

As informações pessoais, por sua vez, gozam de sigilo por até 100 anos, salvo consentimento ou interesse público (art. 31).A classificação é atribuída a autoridades específicas, hierarquizadas (art. 27 da LAI):a) ultrassecreto: presidente da República, vice-presidente, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas; b) secreto: as mesmas autoridades, acrescidas dos titulares de autarquias, fundações e empresas estatais; c) reservado: autoridades de direção, comando ou chefia, nível DAS 101.5 ou equivalente.

Admite-se delegação para as classificações ultrassecreta e secreta, vedada a subdelegação, com exigência de ratificação em certos casos. A reavaliação é obrigatória, de ofício ou por provocação, visando à desclassificação ou à redução do prazo (art. 29).

A Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI) pode rever classificações ultrassecretas ou secretas, prorrogando prazos em hipóteses excepcionais (art. 35).

O cidadão é legitimado a requerer a desclassificação, sendo a negativa obrigatoriamente motivada, com possibilidade de recurso. É certo que o sigilo e o segredo constituem escolhas desalinhadas com o princípio nuclear da publicidade, imperativo no Estado Democrático de Direito.

Submeter atos e fatos à escuridão de desideratos nebulosos significa sacrificar o direito à informação assegurado à cidadania.A regra constitucional exige a publicidade, que somente pode ser afastada em situações especialíssimas, particularizadas pela necessidade imperativa de o Estado custodiar determinado fato.Trata-se do verdadeiro segredo de Estado, que não se confunde com interesse do governo ou do governante.

Noutra dicção: a imposição do sigilo se justifica, excepcionalmente, para proteger o Estado — jamais para atender a conveniências pessoais ou políticas de governantes. Ocorre, contudo, que há recorrentes abusos e desvios de finalidade na decretação do sigilo de documentos e fatos públicos. Muitas vezes, invocam-se motivos para a imposição do sigilo sem fundamentos efetivamente de natureza pública. A fragilidade do modelo permite excessos de clara inconstitucionalidade.

O curioso é que, independentemente do verniz ideológico, políticos de diferentes matizes se refestelam na prática reiterada de impor sigilo, inclusive, em casos que dizem respeito apenas ao seu patrimônio moral, como forma de escudo contra a transparência da vida pública.

Na prática, há um verdadeiro alheamento das instituições nacionais quanto à imposição de sigilos, que se estabelecem sem consistência, sem critérios e sem demonstração de interesse público inconfundível — típico de interesse de Estado. O sigilo deve se vincular apenas ao interesse do Estado, com prazo determinado, e jamais servir de biombo para interesses pessoais.

Outro problema recorrente é o tempo de duração do sigilo. Pelo excesso de prazo, muitas gerações são privadas do direito constitucional de acesso ao conhecimento sobre fatos encobertos, soterrando a transparência — requisito essencial dos atos administrativos.

Governantes costumam impor sigilo sobre atos que mais dizem respeito a seus interesses pessoais do que aos do Estado, como deveria ser.

O encobrimento da verdade e da realidade mostra-se absolutamente contrário ao interesse da sociedade, razão pela qual a restrição da publicidade exige parcimônia e critérios objetivos que efetivamente demonstrem risco à segurança do Estado.

Não basta a vontade do governante. É necessária a presença de condições e requisitos técnicos que justifiquem a excepcional quebra do princípio da publicidade.

O certo é que o sigilo, muitas vezes, não passa de forma disfarçada de censura, destinado a encobrir informações que deveriam ser públicas.

Jamais pode servir de cidadela para proteger a impunidade. A democracia não tolera sombras permanentes. A República exige luz — trata-se de exigência moral da vida pública. Sem luz, a liberdade se retrai.

Advogado*

 

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Por Opinião
postado em 18/09/2025 04:00
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