
Por Fábio Feldmann* — Ao nos aproximarmos dos 40 anos da Constituição de 1988 — a nossa Constituição Cidadã — impossível não recordar o momento em que, como deputado constituinte, apresentei a proposta que hoje integra o artigo 225, § 1º, inciso VII da Constituição Federal, determinando ao Estado proteger a fauna e vedar, na forma da lei, as práticas que submetam os animais à crueldade.
Essa proposta nasceu de um episódio marcante: o debate sobre a "farra do boi" em Santa Catarina, prática brutal que chocou o país por anos. Ao conhecer de perto aquela realidade e outras manifestações de violência contra animais, a Assembleia Nacional Constituinte entendeu que era preciso dar um passo civilizatório e incluir no texto constitucional uma barreira contra a crueldade animal. Assim nasceu um dispositivo que se tornou referência mundial e permanece uma das cláusulas mais avançadas da nossa Constituição no campo socioambiental.
Quase quatro décadas depois, deparo-me com o PL 347/2003, atualmente na pauta de votação da Câmara dos Deputados. Trata-se de um projeto que, sem dúvida, representa um avanço extraordinário na proteção da fauna silvestre: eleva as penas para maus-tratos a animais silvestres e cavalos, podendo chegar a oito anos de reclusão em casos agravados para silvestres, e tipifica o tráfico de fauna, fornecendo um instrumento penal robusto para o combate a esse crime.
Entretanto, o texto contém um grave risco de retrocesso: o § 3º do art. 4º, que exclui os animais de produção agropecuária da proteção conferida pelo artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998). A aprovação desse dispositivo significaria descriminalizar maus-tratos a milhões de animais todos os anos e poderia, até mesmo, extinguir condenações já proferidas em casos emblemáticos, como o massacre das búfalas de Brotas e a morte por inanição de centenas de bezerros em Cunha, em razão do princípio do abolitio criminis (art. 107, III, do Código Penal).
Não se pode aceitar que, para avançar na proteção de silvestres e cavalos, retrocedamos na proteção dos animais de produção. Barganhar direitos conquistados não é avanço. Assim como não seria admissível retirar direitos de mulheres para ampliar os dos homens, não se pode abrir mão de uma conquista civilizatória que levou décadas para ser incorporada ao nosso ordenamento jurídico.
A Constituição é clara: o art. 225, VII, veda práticas cruéis contra toda a fauna. O art. 32 da Lei de Crimes Ambientais é o que dá materialidade a esse princípio constitucional. Retirar sua aplicação aos animais de produção seria violar o princípio da vedação ao retrocesso em matéria ambiental e esvaziar a própria força normativa da Constituição.
Há alternativas técnicas viáveis. É possível construir uma redação que mantenha a proteção penal para os animais de produção e, ao mesmo tempo, resguarde atividades legalmente regulamentadas com equídeos, evitando criminalização indevida. Basta que o § 3º se refira ao § 1º-D, e não ao caput do art. 32, vedadas as práticas de maus-tratos. Essa solução concilia avanço legislativo com respeito às conquistas constitucionais.
O PL 347/2003 deve ser aprovado para garantir maior proteção à fauna silvestre e, se possível, aos cavalos — mas o § 3º precisa ser corrigido ou suprimido para evitar que a lei se torne um instrumento de impunidade. Avançar na proteção penal da fauna sem retroceder é a única forma de honrar o legado da Constituição Cidadã.
Advogado, ex-deputado constituinte e responsável pela inclusão da vedação de maus-tratos a animais na Constituição Federal*
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