
A liberdade é um dos bens mais preciosos do ser humano, base para a dignidade e para a própria existência. Um cidadão só pode ser privado de liberdade em situações expressamente previstas na lei e de acordo com o devido processo legal, conforme determina a Constituição Federal. Infelizmente, essa realidade é vivida apenas na teoria e não na prática, pois no Brasil, e em outros países ao redor do globo, prisões indevidas, causadas por erros judiciais, ainda acontecem.
Foi diante dessa problemática que surgiu o Innocence Project Brasil, uma associação sem fins lucrativos criada em dezembro de 2016, dedicada a enfrentar o grave problema das condenações injustas. O projeto busca não apenas reverter erros judiciais, mas também provocar o debate público sobre suas causas e propor soluções que impeçam que inocentes continuem sendo punidos por crimes que não cometeram.
A iniciativa ganhou notoriedade este mês ao livrar Francisco Mairlon de uma pena injusta de 47 anos, pela qual ele já cumpria 15, por um assassinato do qual não teve participação
A advogada criminalista Dora Cavalcanti, uma das fundadoras do projeto, conta que a inspiração veio durante o período em que atuou como visitante no Innocence Project da Califórnia, em San Diego, entre 2013 e 2014.
"Depois dessa experiência, em que aprendi de perto como funciona um projeto voltado à reversão de erros judiciários e como há uma rede de colaboração entre instituições que buscam entender por que pessoas inocentes acabam presas, decidi adaptar o modelo à nossa realidade", relata Dora.
Segundo ela, os Estados Unidos contam com mais de 60 projetos semelhantes, que ela já acompanhava desde a época em que presidiu o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). "Era um sonho meu trazer essa iniciativa para o Brasil. Convidei dois diretores que já eram meus parceiros de longa data e, juntos, fundamos o Innocence Project Brasil em dezembro de 2016", lembra.
O ano seguinte, 2017, foi dedicado à estruturação das políticas internas e ao desenvolvimento da metodologia de trabalho, um processo cuidadoso, já que cada caso exige uma análise singular para verificar se há provas concretas de inocência. A primeira vitória veio em 2018, quando o projeto já estava em plena operação e começou a transformar, na prática, vidas que haviam sido injustamente marcadas por condenações equivocadas.
A instituição integra a Red Inocente, presente em nove países da América Latina e na Espanha, e também o Innocence Network, que reúne 68 organizações no mundo e já conseguiu reverter a condenação de 624 inocentes.
O Innocence Network teve origem com o Innocence Project Nova York, fundado em 1992, pelos advogados Barry Scheck e Peter Neufeld, na Faculdade de Direito Benjamin N. Cardozo, da Universidade Yeshiva. O projeto surgiu a partir de um estudo conduzido pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos e pelo Senado norte-americano, que revelou que a identificação incorreta por testemunhas oculares estava presente em mais de 70% dos casos de condenações injustas. Diante disso, o Innocence Project passou a trabalhar para exonerar pessoas condenadas injustamente por meio de testes de DNA e outros recursos de reexame de provas.
Com o tempo, o projeto se expandiu e inspirou a criação de mais de 60 iniciativas semelhantes em diversos estados norte-americanos e em outros países. Além de buscar a libertação dos inocentes, o Innocence Project também atua na reforma do sistema de justiça criminal, promovendo mudanças em práticas de interrogatório, reconhecimento de suspeitos e uso de provas científicas, com o objetivo de prevenir erros judiciais futuros.
O projeto, localizado nos Estados Unidos e sede do Innocence Network, também oferece apoio humano e social às pessoas exoneradas, por meio do Exoneree Fund — o Fundo de Exoneração para reintegração à sociedade.
Atualmente, o Innocence Project Brasil já beneficiou 10 pessoas e reverteu 20 condenações injustas. Para enfrentar os desafios de acesso à justiça enfrentados por grande parte da população brasileira, o projeto atua em diversas frentes:
- Análise de casos de pessoas possivelmente inocentes condenadas em definitivo;
- Investigação e obtenção de novas provas de inocência;
- Atuação nos tribunais pela libertação dos assistidos;
- Produção de pesquisas e materiais informativos sobre as causas e a prevenção de erros judiciários;
- Promoção de debates sobre os impactos da desigualdade social no sistema de justiça.
O projeto também mantém uma parceria com a Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), por meio da qual funciona uma clínica jurídica. Nesse espaço, estudantes de Direito aprendem sobre o erro judiciário e participam ativamente da análise de casos reais. Todos os casos de sucesso do Innocence Project Brasil contaram com a colaboração desses alunos, que tiveram papel fundamental na investigação e na produção de provas que levaram à libertação dos inocentes.
Caso Mairlon
A última vitória do Innocence Project Brasil envolve um caso de grande repercussão nacional, tanto na época do crime, em 28 de agosto de 2009, quanto agora, com a reversão da condenação de um dos acusados: o caso da 113 Sul.
Francisco Mairlon foi condenado a mais de 47 anos de prisão pelo assassinato do ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral, José Guilherme Villela, de sua esposa, Maria Carvalho Villela, e da empregada doméstica, Francisca Nascimento da Silva. Além dele, outras três pessoas foram responsabilizadas pelo crime.
Em uma investigação marcada por ilegalidades e abusos cometidos por autoridades policiais, Francisco foi falsamente incluído na cena do crime pelos dois executores do homicídio. Submetido a sucessivos e exaustivos interrogatórios na Delegacia, sem acesso a advogado, alimentação, hidratação ou descanso, acabou confessando falsamente sua participação, em uma clara violação de direitos fundamentais.
Segundo a advogada Dora Cavalcanti, o caso chegou ao Innocence Project Brasil por meio de um pedido de ajuda feito pelos irmãos de Francisco, ambos estudantes de Direito. A equipe também tomou conhecimento da história por meio de um podcast, em 2020, o que despertou o interesse em investigar o processo.
Após dois anos de análise minuciosa das mais de 16 mil páginas do caso, o Innocence Project Brasil ingressou com um pedido de produção de provas na Justiça do Distrito Federal. O objetivo era realizar o exame de confronto entre o material genético de Francisco Mairlon e os vestígios biológicos coletados na cena do crime, além de uma perícia técnica para verificar sua geolocalização no momento dos fatos. O pedido, contudo, foi negado sob o argumento de que as provas seriam "desnecessárias" para questionar a condenação.
No fim de 2022, em meio à busca por provas de sua inocência, o Projeto teve acesso às filmagens das confissões extrajudiciais colhidas na Delegacia. As imagens revelaram práticas manipuladoras por parte dos agentes policiais, que usaram técnicas abusivas baseadas no método Reid, caracterizadas por coerção psicológica e condução forçada dos depoimentos. Essas gravações jamais haviam sido analisadas ao longo do processo que levou à condenação de Francisco.
Em janeiro de 2024, integrantes do Innocence Project Brasil visitaram o presídio onde um dos executores cumpria pena e obtiveram sua retratação, registrada em vídeo, na qual negava a participação de Francisco nos crimes. Com esse novo conjunto de provas, o Projeto apresentou pedido de revisão ao Poder Judiciário, demonstrando a ilicitude das confissões obtidas na fase policial.
A defesa também destacou que os depoimentos indiretos prestados pelos próprios policiais responsáveis pela investigação eram igualmente inválidos, pois apenas reproduziam a confissão forçada feita durante o inquérito. Com a exclusão das confissões falsas, a retratação do corréu e a ausência de qualquer outra prova produzida sob contraditório judicial, tornou-se evidente que não havia elementos capazes de sustentar a condenação.
Após quase 15 anos de prisão injusta, a Justiça finalmente reconheceu as ilegalidades cometidas no processo. Em decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça, Francisco Mairlon recuperou sua liberdade em 14 de outubro, simbolicamente, no mês dedicado à conscientização sobre as condenações injustas.
"Era um caso extremamente desafiador, tanto pela complexidade quanto pelo volume de informações", relata Dora Cavalcanti. "Três semestres de alunos do projeto de extensão do Innocence Project se dedicaram exclusivamente à análise do processo. Eu coordenei o trabalho desde o início, mas houve a participação de diversos advogados e advogadas, da equipe e voluntários."
A advogada destaca ainda o apoio do escritório Cavalcante Sion Advogados, do qual faz parte, responsável por muitas horas de trabalho intenso. "O caso exigiu uma dedicação profunda, fizemos visitas, entrevistas e fomos até o local dos fatos. Foi uma experiência muito marcante, especialmente para os advogados que participaram do júri que resultou na injusta condenação de Mairlon e que continuaram a visitá-lo periodicamente."
O momento da libertação, segundo Dora, foi de emoção indescritível. "Por tudo o que o caso representa e pela postura sempre gentil, doce e positiva do próprio Mairlon, foi um dos momentos mais comoventes da história do Projeto", declara.
Na visão da advogada, o caso de Francisco Mairlon é exemplar para estudos, pois reúne praticamente todos os principais fatores contributivos para erros judiciários já mapeados pela literatura especializada. "O elemento mais marcante foram as falsas confissões, conhecidas na doutrina brasileira como chamadas de corréu. Houve promessas, induzimento e uma série de ilegalidades na tomada dos depoimentos de Leonardo e Paulo, ainda na fase de inquérito", diz.

Direito e Justiça
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