
Por Roberta Ferme Sivolella* — Na última semana, manchetes escancararam uma realidade que insiste em se perpetuar: a brutalidade contra mulheres. Uma jovem arrastada por um carro até a mutilação das pernas; uma mãe que viu sua casa incendiada pelo companheiro; uma mulher violentada e morta a caminho da aula de natação; duas chefes baleadas no trabalho; uma militar carbonizada por um ex-colega. Casos que não são exceção, mas expressão de um fenômeno descrito pela ONU como pandêmico.
Essa violência não se limita ao ato físico. Ela se espetaculariza nas marcas deixadas no corpo feminino — mutilações, queimaduras, cortes — atingindo a estética e a dignidade da vítima. Como lembra Judith Butler, "o corpo é sempre um espaço político", e, quando brutalizado, expõe a vulnerabilidade criada por normas culturais de gênero que definem quem merece proteção e quem pode ser ferido. Ao atingir aquilo que culturalmente representa o feminino, a violência brutal reforça a lógica de controle e dominação, convertendo o corpo em território de poder e humilhação. Impõe à vítima uma identidade indelével, marcada pela dor.
A violência contra a mulher também se reinventa em formas menos visíveis, mas igualmente devastadoras, quando a mulher reivindica sua proteção e reparação. A violência vicária, a violência processual e a violência institucional são apenas alguns dos fenômenos inerentes a um sistema estruturado em standards patriarcais históricos, e que contribuem para a manutenção do grave estado de desconformidade estrutural que envolve a violência contra a mulher. São mecanismos já repudiados por diversos organismos e normas internacionais das quais o Brasil é signatário, e que merecem o conhecimento e o reconhecimento devidos em relação a sua força normativa e aplicação.
A violência invisível assume formas sutis- mas não menos brutais em seus efeitos- de manifestação junto aos sistemas de proteção. A culpabilização da mulher por meio de estereótipos e presunções "in malam partem contra feminam" para definir a guarda de menores; a ausência de ferramentas eficazes para coibir o uso da litigância abusiva, presente nas múltiplas ações retaliativas movidas em face da mulher, e que nascem como resposta à mulher que denuncia a violência ou pleiteia legitimamente seus direitos em juízo; e a revitimização por meio de ação ou omissão do sistema que deveria acolhê-la, por vezes reproduzindo os estereótipos marcados pela violência, são apenas alguns dos seus exemplos. Situações que, tais como as mutilações e agressões físicas extremas, atingem a mulher em sua dignidade, e convertem os espaços de acolhimento em territórios de poder e perpetuação da dor.
A responsabilidade institucional é inegável, e ações recentes tem buscado esse enfoque. No caso do Poder Judiciário, políticas internas de prevenção e combate à violência contra a mulher direcionam inúmeras iniciativas do Conselho Nacional de Justiça. No âmbito da Corregedoria Nacional de Justiça, um Provimento publicado em julho de 2025 (Provimento CN 201/2025) foca na responsabilidade institucional para a adoção de medidas estruturais voltadas ao enfrentamento da violência contra a mulher, e em instrumentos de acompanhamento da aplicação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero nos processos judiciais e administrativos, por meio de canal simplificado e acessível para o encaminhamento dos relatos de mulheres vítimas de violência. O primeiro acordo de cooperação técnica foi firmado com o tribunal de Justiça do estado do Amazonas, focando na replicação da sistemática em todos os Tribunais do país.
No último final de semana, as mulheres e todos aqueles que sonham com uma sociedade mais igualitária tiveram um sopro de esperança. Milhares de pessoas foram às ruas, clamando por um direito básico: o de existir sem medo. Aliás, a tônica da ação coletiva seguiu a lógica inclusiva dos movimentos sociais da atualidade. Homens foram chamados reiteradamente a participar, e as interseccionalidades — como as ligadas à raça, orientação sexual e classe — foram integradas à súplica geral. Afinal, é a potência da diversidade que transforma vozes isoladas em um movimento capaz de redefinir estruturas sociais.
Nesse contexto, ninguém pode se calar. O que deve vir como resposta quando uma mulher busca acolhimento e não encontra espaço ou escuta? Como fortalecer leis criadas para prevenir a violência contra a mulher e proteger as vítimas, corrigindo desigualdades, de modo a coibir interpretações restritivas que limitem a sua real aplicação? Se o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu a impossibilidade de condutas que impõem humilhação moral da vítima em processos judiciais e administrativos, e se há lei sobre o tema, como justificar a inobservância a tais comandos- e não falo aqui somente de um ator processual específico-, ainda que por omissão?
Estamos em um momento ímpar para enfrentar essas questões. Quando a sociedade grita desesperadamente por uma solução, calar-se — individual ou institucionalmente — não é uma opção.
Juíza do Trabalho. Doutora em direito processual e pós-doutora em direito público pela UERJ. Juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça. Membro do Fonavim e do Comitê Executivo da Ouvidoria Nacional da Mulher*
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