Entrevista

Quebra-cabeça jurídico para livrar Bolsonaro

Criminalista explica como o PL da Dosimetria pode reduzir penas do 8 de Janeiro e beneficiar Bolsonaro, mas alerta que o STF dará a palavra final

Aprovado em plena madrugada, o Projeto de Lei da Dosimetria, criado sob medida para ajudar a acelerar o tempo de prisão em regime fechado imposto ao ex-presidente Jair Bolsonaro, é uma construção jurídica, com várias peças que montam o quebra-cabeça de uma pena menor. Para explicar o texto do projeto, o caderno Direito&Justiça buscou a ajuda do advogado Thúlio Guilherme Nogueira, criminalista, mestre em direito processual pela PUC Minas, especialista em direito penal econômico pela Universidade de Coimbra e sócio o Drummond e Nogueira Advocacia Penal.

Nogueira explica passo a passo como o PL da Dosimetria pode beneficiar os condenados pelo 8 de Janeiro e pela trama golpista: um somatório de concurso formal para os crimes contra o Estado Democrático, redução do tempo para progressão do regime fechado para o semiaberto e facilidades na remição (abatimento) das penas. Mas, como tudo acontece no Judiciário, a palavra final — se as medidas são constitucionais — será do Supremo Tribunal Federal.

O que muda com o PL da Dosimetria aprovado pela Câmara no modo de calcular e aplicar as penas?

O PL modifica dois pilares da punição. Primeiro, provoca o fim da soma das penas nos crimes contra o Estado Democrático. O novo art. 359-M-A determina que, quando os crimes do Capítulo II-B do Título XII (como tentativa de golpe e tentativa de abolição violenta) forem praticados no mesmo contexto, a pena será aplicada na forma do concurso formal próprio, vedada a soma das penas (art. 69 e 70, segunda parte). Na prática: somente a pena mais grave será considerada. Em segundo, prevê a progressão de regime mais rápida para esses delitos. O artigo 112 da LEP (Lei de Execução Penal) volta a prever como regra geral a fração de um sexto, exatamente para beneficiar quem pratica os delitos desse capítulo do Código Penal.

Quais garantias existem de que os réus realmente terão redução de pena?

Não há garantia automática. Há três etapas: a lei precisa ser aprovada no Senado e sancionada. Aplicação da lei mais benéfica: sendo lei penal mais favorável, ela retroage obrigatoriamente (art. 5º, XL, da Constituição), mas a readequação da dosimetria terá de ser feita caso a caso pelo juízo competente (no caso do 8 de Janeiro, pelo próprio Supremo Tribunal Federal). Há, nesse caso, margem de discricionariedade técnica: o STF (ou o juízo da execução) terá de decidir qual fração aplicar no concurso formal (aumento de um sexto a metade) e se cabe, ou não, a redução de um terço a dois terços para quem atuou em "multidão" sem liderança.

Deputados calculam que a pena do ex-presidente Jair Bolsonaro seja reduzida de 27 anos para dois anos. Como seria isso?

Ao analisar os impactos do PL da Dosimetria, é fundamental separar a pena total do tempo efetivo em regime fechado. São cálculos distintos e produzem efeitos diferentes. No caso do ex-presidente Jair Bolsonaro, a pena fixada pelo STF é de 27 anos e 3 meses. Com o novo art. 359-M-A, os crimes do capítulo do Estado Democrático de Direito, quando praticados no mesmo contexto, deixam de ter penas somadas e passam a ser tratados como concurso formal próprio. Isso significa que se parte da pena mais grave, com um aumento previsto no art. 70 do Código Penal. O número exato depende de uma nova dosimetria pelo STF, mas as estimativas atuais apontam para algo em torno de 21 a 22 anos. A segunda etapa diz respeito ao regime fechado. Como esses crimes não integram os Títulos I e II do Código Penal e não são hediondos, volta a valer a regra geral do art. 112 da LEP: progressão após um sexto da pena. Sobre uma pena total nessa faixa, o tempo mínimo de cumprimento em regime fechado fica em cerca de três anos e alguns meses.

Há ainda a remição da pena?

Sim. A isso soma-se a remição de pena, cujo alcance foi ampliado pelo PL. O novo §9º do art. 126 deixa explícito que também há remição no regime domiciliar. Assim, estudo ou trabalho regulares permitem reduzir um dia de pena a cada três de atividade comprovada. É a combinação entre progressão em um sexto e remição contínua que levou o relator a projetar a possibilidade de Bolsonaro permanecer cerca de dois anos e quatro meses no regime fechado, caso mantenha dedicação integral às atividades que dão direito ao benefício. Há ainda a detração penal, que é o abatimento da pena definitiva pelo período já cumprido sob restrição de liberdade. Embora Bolsonaro não esteja preso preventivamente neste processo, o STF pode ser provocado a avaliar se o período de prisão domiciliar — a depender das restrições efetivamente impostas — pode ser considerado para fins de detração. A jurisprudência admite essa possibilidade quando o regime domiciliar se aproxima, na prática, das limitações impostas pelo regime fechado ou semiaberto. É sempre uma análise individualizada, feita pelo juízo da execução — no caso dos condenados pelo STF, o próprio Supremo.

Caso o projeto seja aprovado também no Senado e sancionado, o que muda para os condenados já cumprindo pena? Eles podem solicitar reavaliação imediata?

Se o projeto virar lei, por força da retroatividade da lei penal mais benéfica, todas as sentenças baseadas nesses crimes e nessas regras de progressão terão de ser reavaliadas naquilo que for mais favorável ao condenado. Assim, quem já estiver preso poderá requerer ao juiz da execução (no caso aqui, no próprio STF, aparentemente) que recalcule o tempo de progressão e aplique eventuais redutores. Não é automático: haverá um "mutirão de papel" — pedidos individuais, manifestação do Ministério Público e decisões do STF.

Se virar lei, a nova forma de soma de penas deve beneficiar todos os condenados da tentativa de golpe de Estado?

Depende da situação de cada um, mas em tese, sim, nos pontos em que: o condenado tenha sido punido simultaneamente pelos dois crimes do capítulo (tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito) no mesmo contexto fático. Aí incide a nova regra de concurso formal próprio, que tende a reduzir a pena em relação ao modelo de soma integral aplicado hoje. Se o condenado não for líder nem financiador e tiver atuado em contexto de "multidão", pode, em tese, pleitear a redução de um terço a dois terços da pena, a ser analisada individualmente. Para a cúpula (Bolsonaro, ex-ministros, comandantes etc.), o principal benefício é a nova forma de concurso e a progressão com um sexto. Já o redutor por "multidão" tende a ser aplicado a manifestantes de base, não aos líderes.

Acredita que, se o projeto virar lei, o Supremo Tribunal Federal poderá derrubar as mudanças?

Sim. Esses fundamentos são corretos e juridicamente consistentes. A lei pode ser contestada por ADI ou por controle difuso, e os argumentos centrais de inconstitucionalidade incluem: violação à proteção constitucional do Estado Democrático de Direito, caso se entenda que a lei fragiliza a tutela penal desse bem jurídico. Também desproporcionalidade na redução das penas ou na forma de execução, se isso comprometer a efetividade da repressão às condutas que atentam contra a ordem constitucional. Outro argumento é a usurpação da função jurisdicional do STF, pois a lei impacta diretamente condenações já proferidas pela Corte, argumento especialmente sensível no contexto político atual. Possível caráter de legislação ad hominem, se ficar demonstrado que o objetivo prático foi beneficiar réus específicos julgados pelo Supremo. Todos esses pontos são legalmente defensáveis e fazem parte do repertório tradicional de controle de constitucionalidade no Brasil.

 


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