ARTE

Projeto promove acesso gratuito a acervo digital de Vinicius de Moraes

São 11 mil documentos originais do escritor carioca, com poemas, correspondências e outros textos

» Severino Francisco
postado em 30/05/2021 06:00
Vinicius de Moraes: poeta renova a relação com o público ao entrar na era da internet -  (crédito: VM Cultural /Divulgação)
Vinicius de Moraes: poeta renova a relação com o público ao entrar na era da internet - (crédito: VM Cultural /Divulgação)

Vinicius de Moraes foi multimídia: poeta, compositor, letrista, cantor, cronista e jornalista. Agora, o poeta chega à era virtual com o Acervo Digital Vinicius de Moraes, que permite acesso gratuito a seu legado. São 11 mil documentos originais digitalizados, com poemas, textos em prosa, letras de música, peças, roteiros, notas, discursos e cartas, que registram 50 anos de criação. O acervo está dividido em três séries: Correspondências, Produção Intelectual e Documentos Diversos.

Brasileiríssimo, Vinicius era, ao mesmo tempo, um cidadão do mundo. O acervo registra a amizade com Menininha do Gantois, Orson Welles, Tom Jobim, Pablo Neruda, João Cabral de Melo Neto, Charlie Chaplin, Baden Powell, entre outros. Passa pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Ouro Preto, Montevidéu, Paris, Oxford, Los Angeles e Brasília.

Brasília ganhou um segmento especial com toda a documentação relativa à Sinfonia da Alvorada, composta em parceria com Tom Jobim, quando visitaram o Catetinho. O projeto do Acervo Digital foi idealizado e coordenado pela cineasta Julia Moraes, neta de Vinicius, com parceria do Museu Literatura Brasileira Casa Rui Barbosa e apoio do Itaú Cultural por meio da Lei Rouanet. Em entrevista ao Correio, Julia fala sobre a entrada de Vinicius na era digital, a relevância do projeto para a criação e a fé que Vinicius tinha no futuro do Brasil.

O que foi reunido neste acervo de Vinicius? Qual é o foco do projeto?
O foco principal são os documentos que Vinicius juntou toda vida. Tem desde o primeiro poema, que ele escreveu aos 8 anos de idade, passando por originais, rascunhos, cartas e o dia a dia da vida diplomática. O acervo reúne o que ele considerou importante e organizou com as irmãs, Lygia e Laetitia de Moraes. Quando ele morreu, a família doou ao Museu de Literatura da Casa Rui Barbosa. Na verdade, a ideia do Museu de Literatura nasceu em 1972, com uma série de crônicas de Carlos Drummond publicou. O Plinio Dolye criou o museu e chegaram os acervos do Rubem Braga, da Clarice Lispector, do Murilo Mendes e de outros escritores. O Acervo Digital do Vinicius é dirigido aos pesquisadores e ao público em geral, cada um faz a sua viagem. Acho que a obra do Vinicius ganha um frescor no espaço digital, pois ele era multimídia. Essa documentação demorou 10 anos para ser inventariada.

Vinicius parece um poeta somente da inspiração. Mas os manuscritos dele revelam que lapidava incessantemente os textos, ele era um ourives da palavra...
Com certeza, Vinicius tinha uma incrível capacidade de trabalho, ele explora várias versões em busca da voz lírica dele. Algumas coisas ele não considerou suficientemente boas. Era o artista que trabalhava 24 horas por dia, existe o Vinicius alegre, mas também o Vinicius contrito. A canção Garota de Ipanema te leva para a mesa de um bar. Mas ele trabalhou arduamente para chegar até aquela forma elevada. É uma grande construção sobre o olhar, a juventude que passa e sobre a cidade que ele amava. Existe o estereótipo do bonachão, do cara que bebia o tempo todo, mas isso não é verdade. Vinicius suava em cima daquele papel. Ele fazia questão de mostrar que trabalhava. Tanto que deixou tudo organizado em uma pastinha. Ele produziu muito e compartilhou com o mundo.

Como vê a importância de rever a tradição de Vinicius do ponto de vista da invenção atual?
Vivemos era muito rica de informação na internet, mas isso não quer dizer, necessariamente, invenção. É preciso distinguir as vozes do passado entender o que é uma voz futura. O Vinicius tinha uma crença muito grande na juventude. A preocupação dele era com as gerações futuras. Então, eu acho que esse projeto vem remediar uma desorientação. A memória de um país é feita de pequenas coisas. Só assim, você sabe quem você é e para onde vai.

O que este acervo revela a mais sobre o que se sabe de Vinicius?
Aprendi que preciso saber muito mais. É uma ferramenta de aprendizado. Existe o engajamento do Vinicius com a construção de uma identidade cultural brasileira. Ele queria doar isso para as novas gerações. É uma generosidade incrível. Vinicius não é o estereótipo do marido ou do funcionário, mas está mais alto na escalada da honestidade. Que era fruto de um amor enorme pelo Brasil. Amor pelo Rio de Janeiro, amor pela cultura negra, apesar de ele ser, ao mesmo tempo, muito universal, pois conhecia profundamente a literatura inglesa e a literatura francesa.

O acervo tem um bloco sobre a passagem por Brasília para compor a Sinfonia da Alvorada. O que ela revela e, em que medida, apesar de ser uma passagem curta, de 10 dias, ela foi importante para Vinicius?
O Vinicius era muito engajado com a questão do Brasil. Parece que, com a construção de Brasília, o Brasil seria um país maravilhoso e tudo daria certo. Brasília tentava curar um passado escravocrata. Depois, a gente via que não era bem assim, que as coisas eram mais complicadas. E, ao mesmo tempo, os afetos era muito importantes. Vinicius tinha grande amizade pelo (Oscar) Niemeyer e pelo Tom Jobim. Considerava uma família que ele escolheu, como disse em um filme da Suzana Moraes. E ele acreditava mesmo neste projeto de Brasil. Na Sinfonia da Alvorada, ele conta quantos sacos de cimento, quantos fios, quanto de ferro foi preciso para erguer Brasília. Estava engajado com a materialidade deste projeto. Vinicius era muito culto, queria dar grandeza à celebração de Brasília, escolheu a forma clássica do libreto de ópera. Nada menos do que uma sinfonia.

Na biografia Vinicius, o poeta da paixão, José Castelo diz que Vinicius pediu a Oscar Niemeyer que fizesse o projeto de uma casa inspirada no Catetinho. O que você sabe sobre essa história?
Não sei nada com essa história. Sei que essa casa em Petrópolis, Vinicius reunia com Edu Lobo, Carlinhos Lyra e muitas outras pessoas importantes e produziram não sei quantas mil músicas. Uma coisa sempre conversa com a outra. O Vinicius tinha algo de articulador. Conheceu a Mercedes Souza em show em Buenos Aires e a apresentou a Maria Bethânia, a Caetano Veloso, a Milton Nascimento. A amizade dele com o Tom é uma coisa maravilhosa. Tinha um senso de humor ótimo. Quando eles faziam a música do filme Orfeu, o diretor Marcel Camus estava aflito com a demora na entrega da trilha sonora. Eles se divertiam, porque o Marcel resolveu apressar o processo e pediu, escondido, a música para o Dorival Caymmi.

Vinicius é importante neste momento de tanta descrença no Brasil?
Quando Vinicius diz “saravá”, ele quer dignificar a cultura negra, pois a capoeira era proibida por lei. Vinicius dizia que, se pudesse escolher, queria ser Pixinguinha, melhor pessoa que viu na vida. Fazia salves para Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha. Com Orfeu, Vinicius leva a cultura grega a uma comunidade negra. Ele considerava a cultura negra tão grande quanto a cultura grega. É a favela carioca com todos os elementos da cultura grega. Esse é o grande entendimento do Brasil, dizia isso conhecendo a cultura de todos os países. Foi o primeiro bolsista brasileiro na Inglaterra, amigo de Orson Welles e de todos os jazzistas. Perseguido, Vinicius sempre voltava ao Brasil e ao Rio de Janeiro. Mesmo nos momentos difíceis, ele tinha uma profunda fé no Brasil.

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