Enquanto, à frente do palco, diante das luzes e dos flashes, Mick Jagger requebrava as cadeiras e Keith Richard emendava um riff atrás do outro na guitarra, Charlie Watts sustentava todo o peso dos Rolling Stones com a placidez de suas baquetas e um sorriso inconfundível. Era o lado zen de uma banda genial que se também tornou sinônimo de excessos. Charlie morreu ontem, aos 80 anos. “Com grande tristeza anunciamos a morte do nosso querido Charlie Watts”, afirmou o agente da banda em um comunicado, acrescentando que “ele morreu tranquilamente em um hospital de Londres, cercado pela família”.
O porta-voz do artista já havia anunciado, no início de agosto, que o baterista não participaria da turnê norte-americana da banda, prevista para este semestre, por motivos médicos. “Charlie foi operado com sucesso, mas seus médicos acreditam que ele precisa descansar”, explicou, sem mais detalhes.
Em 2004, Watts foi tratado no Hospital Royal Marsden de Londres de um câncer de garganta, do qual se recuperou após uma luta de quatro meses contra a doença, incluindo seis semanas de radioterapia intensiva.
Filho de pessoas simples, o pai era motorista de caminhão, Charles Robert Watts nasceu em Londres, em 2 de junho de 1941, na região do bairro de Brent. Aos 13 anos, ganhou uma bateria dos pais, o que fez aumentar a paixão pelo jazz. Foi tocando na banda Blues Incorporated que impressionou, em 1963, Brian Jones e os outros rapazes dos Rollings Stones. Começava um casamento perfeito.
Fantástico
Estrelas do rock homenagearam Charlie Watts nas redes sociais. Paul McCartney publicou vídeo no Instagram desejando muito amor à família de Watts e prestou condolências aos Rolling Stones. “Eu sabia que ele estava doente, mas não sabia que era desta forma. Envio muito amor para a família dele, sua esposa, filhos e parentes. Charlie era uma rocha. Um baterista fantástico. Eu te amo, Charlie, sempre te amei. Um homem lindo”, disse no vídeo. Ringo Starr usou o Twitter para também lamentar. “Deus abençoe Charlie Watts. Nós vamos sentir sua falta, cara”, lamentou na publicação que tem uma foto dos dois segurando uma baqueta de bateria.
“Tive a alegria de assistir aos Stones em São Paulo, em 1995, e em Porto Alegre, em 2016, debaixo de um temporal. Charlie discretamente, ali atrás, no fundo do palco, comandando os geradores de força daquela usina de ritmo, dança, suor e prazer”, relembra Militão Ricardo, da icônica Banda 69, que brilhou pelos palcos de Brasília nos anos 1980. “Aprendi bateria acompanhando os discos dos Stones. Como ser simples e pulsante? Como enfeitiçar a plateia? Charlie tinha a resposta”, acrescenta.
Marcelo Capucci, baterista da Plebe Rude, também lamenta. “Foi um dos músicos mais brilhantes do rock n’ roll. Sua pegada, a polirritmia e chops jazzísticos, dentro de uma banda com tantos riffs, sempre me impressionaram. Deixa um legado incrível”, destaca. Watts nunca tocava chimbal junto da caixa, como a maioria dos bateristas de rock fazem, explica Rafael Pereira, produtor e professor de bateria formado pela Escola de Música de Brasília. “O rock já foi muito mais dançante do que hoje conhecemos, graças a Mr. Watts”, diz.
Guitarrista brasiliense radicado em São Paulo, Dilo D’Araújo reforça o sangue jazzístico nas veias e artérias de Charlie. “Ele não agredia o instrumento, ele fazia carinho, e nos fez dançar. Nada melhor do que o título de uma emblemática música dos Stones para esse momento: Miss you”.
“Durante 50 anos de caos, o baterista Charlie Watts representou a calma em meio à tempestade dos Rolling Stones, tanto dentro como fora dos palcos”, escreveu o jornal britânico Mirror em 2012. O músico, no entanto, não era totalmente impermeável aos vícios da banda: na década de 1980, foi submetido à reabilitação por heroína e álcool. “Foi um tempo muito curto para mim”, explicou ele. Simplesmente parei, não era algo para mim”, confessou Watts.
Colaborou Naum Giló*
* Estagiário sob a supervisão de Severino Francisco
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O homem certo
Charlie Watts sempre pareceu fora de lugar. Enquanto Mick Jagger rebola e pula sem parar, e Keith Richards faz caretas e sacode a guitarra, ele passava os shows marcando o ritmo na caixa e no bumbo apenas com um sorriso de canto de boca. Era a pedra que não rolava.
Amante do jazz, chegou a lançar sete discos como band leader, escreveu um livro sobre o saxofonista Charlie Parker e preferia ver seus ídolos a tocar. Sempre disse que tocava nos Rolling Stones porque era seu ganha-pão, não porque gostasse. Não era bem assim; além de se divertir, foi um baterista de muita qualidade.
Mas quando, já idoso, perguntado como era tocar na maior banda de rock do mundo, ele deu de ombros e respondeu: “São quatro décadas vendo a bunda de Mick Jagger na minha frente”. Nos anos 1980, perdeu o rumo com excesso de álcool e drogas e recordou mais tarde: “Fiquei tão mal que até Keith (Richards), abençoado seja, disse para me compor”. Como se vê, era um representante legítimo do humor britânico, aquele feito para ninguém rir. Mas sabia ser irônico: “Dinheiro é uma coisa muito útil de se ter. Na verdade, quanto mais você ganha, menos parece que você toca”. Era uma crítica ao mercado que paga tanto aos astros de rock e tão pouco aos músicos de jazz.
Numa dessas eleições da revista Rolling Stone, ele ficou em 12º lugar entre os maiores bateristas de rock. Merece mais. Usando uma bateria básica — quatro tambores e cinco pratos e chimbau — Watts marcou a música da banda com seu característico acento no tempo fraco do compasso, técnica inspirada em seus ídolos do jazz.
Com isso, ele inspirou um sem número de bateristas em todo o planeta. Em sua carreira solo, experimentou diversas formações — big band, quinteto, trio —, explorou repertório de standards da música norte-americana (nos discos Warm & Tender, 1993; e Long Ago & Far Away, 1996) e digressões (em From One Charlie, 1991) e abusou de parcerias (com Ry Cooder, Brian Knight, Axel Zwingenberger, Dave Green).
Ou seja, ele só parecia estar parado no palco. Estava sempre no lugar certo.