LITERATURA

A voz do pós-colonialismo: entenda o trabalho de Abdulrazak Gumah, o Nobel de Literatura

A Academia Sueca escolheu o tanzaniano para receber o Prêmio Nobel de Literatura. Autor tem 10 romances nos quais reflete sobre migrações e violência

Nahima Maciel
postado em 08/10/2021 06:00
Gurnah começou a escrever aos 21 anos e seu primeiro romance, Memory of departure, foi publicado em 1987 -  (crédito: Simon Jarratt/AFP)
Gurnah começou a escrever aos 21 anos e seu primeiro romance, Memory of departure, foi publicado em 1987 - (crédito: Simon Jarratt/AFP)

Foram necessários exatos 34 anos para um autor africano retornar à lista de vencedores do Prêmio Nobel de Literatura. O tanzaniano Abdulrazak Gurnah foi laureado ontem pela Academia Sueca por sua “investigação rigorosa e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no abismo entre as culturas e os continentes”. Até então, apenas três autores negros haviam sido agraciados com o prêmio: Toni Morisson (Estados Unidos), Wole Soyinka (Nigéria) e Derek Walcott (Santa Lucia).

Nascido na ilha de Zanzibar em 1948 e refugiado na Inglaterra desde os anos 1960, Gurnah é uma das vozes mais importantes da literatura pós-colonial de língua inglesa. Com livros escritos em inglês, mas com influências de hindi, árabe e suaíli, a língua oficial da Tanzânia, Gurnah explora universos como a situação dos refugiados e a violência do colonialismo sempre com um olhar que foge dos estereótipos para revelar ao mundo um lado pouco conhecido do oeste do continente africano. Integrante do comitê do Nobel, Anders Olsson disse que o autor “abre nossos olhos para um oeste africano culturalmente diversificado e pouco familiar para muitos em outras partes do mundo”.

Professor de inglês e literatura pós-colonial na Universidade de Kent (Inglaterra), Gurnah é autor de 10 romances, todos sem tradução no Brasil, e é ele mesmo um refugiado. O escritor deixou Zanzibar aos 18 anos, quando pessoas de origem árabe passaram a ser perseguidas durante uma revolução responsável por depor o então sultão que governava a ilha. Gurnah começou a escrever aos 21 anos e seu primeiro romance, Memory of departure, foi publicado em 1987. No livro, ele conta a história do jovem Hassam, um adolescente em luta com um pai disfuncional e com a perseguição aos árabes em uma cidade da costa oeste africana.

O autor pode ser pouco conhecido internacionalmente, mas já esteve em listas de prêmios importantes. Paradise, o quarto romance, foi finalista do Booker Prize de 1994 e narra a trajetória do jovem Yusuf, filho de um comerciante de uma cidade da Tanzânia oferecido pelo pai como escravo para pagar uma dívida. Seu mais recente romance, Afterlives, lançado em 2020, tem como pano de fundo a brutalidade da colonização alemã no que então era conhecido como Tanganyika, um reino no qual um casal luta para sobreviver em meio à violência colonial.

Fenômeno

Em entrevista para o site da Academia Sueca, Gurnah falou sobre o fluxo contemporâneo de refugiados vindos da África e sobre as divisões causadas pelo drama dos deslocamentos humanos na Europa. “Não vejo essas divisões como permanentes ou intransponíveis. Esse fenômeno de africanos indo para a Europa é relativamente novo, mas pessoas se movendo ao redor do mundo é um fenômeno de séculos”, lembra. “Não acho que seja tão difícil para as pessoas e para os estados europeus encontrar um caminho para isso, mas é talvez uma espécie de avareza. Muitas dessas pessoas vêm com necessidades, mas elas também têm algo a dar. Não vêm de mãos vazias. Muitas são pessoas talentosas e cheias de energia, que têm muito a dar. Elas podem contribuir em alguma coisa.”

Ao jornal The Guardian, a editora de Gurnah, Alexandra Pringle, da Bloomsbury, disse que o Nobel foi mais do que merecido para um autor que ainda não obteve reconhecimento suficiente. “Ele é um dos grandes autores africanos vivos, e ninguém sabia nada dele. Isso me deixava mortificada. Fiz um podcast na semana passada no qual falei que ele era um autor ignorado. E, agora, aconteceu o Nobel”, disse a editora, que enxerga a obra do tanzaniano como tão importante quanto a do nigeriano Chinua Achebe, referência da literatura africana. “A escrita dele é particularmente bonita, grave, bem-humorada, gentil e sensível. É um escritor extraordinário que escreve sobre coisas realmente importantes”.

Transparência

O vencedor do Prêmio Nobel é escolhido por um grupo de 18 membros da Academia Sueca, e não há finalistas ou lista de indicados, apenas especulações e apostas propagadas pelo mundo inteiro, especialmente na área de literatura. Em 2017, um escândalo de abuso sexual fez a academia suspender a premiação e investir em uma forma mais transparente de trabalhar. O vencedor leva para casa 10 milhões de coroas suecas, ou US$ 1 milhão. No ano passado, a vencedora foi a poeta Louise Glück e, em 2019, o austríaco Peter Handke, autor controverso acusado de negar o genocídio bósnio na região de Srebenica.

Este ano, as apostas giraram em torno de nomes badalados como do francês Michel Houellebecq, do japonês Haruki Murakami, do moçambicano Mia Couto, do albanês Ismail Kadaré, da canadense Margaret Atwood e das americanas Joan Didion e Joyce Carol Oates. Autores menos conhecidos, como o sul-coreano Ko Un, o queniano Ngugi wa Thiong’o, o chinês Can Xue e o indiano Vikram Seth também foram ventilados no meio literário. Concedido 118 vezes ao longo dos últimos 120 anos, o Nobel de Literatura laureou apenas 16 mulheres, a maioria europeia, motivo pelo qual já foi acusado de machista e eurocêntrico.

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