Gigante, Elza Soares enfrentou o racismo, a ditadura e o machismo

Mulher de luta, Elza Soares morreu, ontem, aos 91 anos, mas sua voz e sua história a transformaram na cantora do milênio

Naum Giló*» Pedro ibarraaTalita de souzalita de Souza
postado em 21/01/2022 06:00 / atualizado em 21/01/2022 10:42
Cena do filme My Name is Now, Elza Soares de Elizabete Martins.  -  (crédito:  Paolo Giron/Divulgacao)
Cena do filme My Name is Now, Elza Soares de Elizabete Martins. - (crédito: Paolo Giron/Divulgacao)

A morte de Elza Soares, aos 91 anos, às 15h45 de ontem, pegou todos de surpresa. Mesmo com a idade avançada, a cantora, que foi considerada a voz do milênio, nunca deixou de lado o seu ofício. Ao longo dos anos 2010, lançou três álbuns de grande repercussão na indústria fonográfica, entre eles o icônico Mulher do fim do mundo (2015), disco que jogou luz em assuntos espinhosos como racismo, machismo e feminicídio. 

Em 1999, a rádio BBC elegeu a brasileira da Vila Vintém, favela da zona oeste do Rio de Janeiro, como a melhor voz do milênio que então se encerrava. A Time Out a descreveu como "uma mistura de Tina Turner e Celia Cruz". O inconfundível vocal metalizado de Elza Soares a fez ser reconhecida como uma das maiores artistas do universo do samba brasileiro. Uma mulher que surgiu em um programa de calouros de rádio, conquistou o Brasil, mas, não satisfeita, também conquistou o mundo.

"Elza Soares, que morreu de causas naturais, não era apenas uma grande cantora que desaparece, ela é um personagem do Brasil, da artista, da mulher negra, da sambista e principalmente da resistência e da originalidade", afirma o crítico musical Ricardo Cravo Albin ao Correio. O pesquisador, amigo pessoal da cantora, compara Elza a uma deusa, uma figura que mudou e ficará para sempre no imaginário do povo brasileiro.

"Ela foi como um cometa, que passa rasgando o céu. Esse cometa que fica, essa luz fica iluminando o céu para que os brasileiros olhem para cima e sempre vejam Elza Soares", continua Cravo Albin, que já chegou a ficar hospedado na casa da artista. "Me emociona muito falar dela. Ela é a originalidade, a coragem, e sobretudo a resistência", completa o crítico.

Segundo o estudioso da música popular brasileira Rodrigo Faour, Elza foi muito especial porque influenciou o Brasil durante aproximadamente sete décadas, começando a cantar no final dos anos 1950 e mantendo a voz ativa e relevante até a atualidade. "Ela foi a maior sambista no Brasil nos anos 1960, mudou a música brasileira nos anos 1980, em 1999 conquistou mais uma vez o país e, mais recentemente, teve uma virada definitiva com o disco A mulher do fim do mundo, emplacando até hit", destaca o crítico musical. "Podemos dizer que ela mudou completamente a música brasileira pelo menos quatro vezes em 70 anos. Sempre que ela pôde, ela mudou a história da música e da cultura brasileiras", complementa.

"No final da carreira, ela conseguiu fazer o que nenhuma pessoa conseguiu no mundo inteiro: mudar de gênero e conquistar o coração do jovem. É impensável que uma mulher de 85 anos possa conquistar um público tão distante. É um feito muito difícil, ainda mais no Brasil, um país que dá tão pouco valor aos mais velhos", analisa Faour. "Encerrou a carreira dela no auge. No final da vida ela virou uma ativista e virou uma cantora querida pelos jovens do país inteiro", adiciona o especialista. "Ela sempre deu uma nova contribuição, sempre ousada e mostrando que podia mudar", finaliza. O corpo de Elza Soares será velado, hoje, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Repercussão

Caetano Veloso, a quem se referiu como 'irmão', afirmou que Elza "morreu na glória a que fazia jus". Caetano é considerado pela artista como o salvador da carreira dela, já que Elza pediu ao cantor ajuda em uma época depressiva, em que pensava em desistir da carreira, sobretudo por dificuldades com gravadoras. 

"Tendo sido fã de sua voz e musicalidade desde os meus anos de ginásio, tive a honra de ser procurado por ela quando de sua iminente decisão de abandonar a carreira e/ou o Brasil. Fui capaz de convencê-la a ficar porque entendi que aquilo era uma espécie de pedido de socorro", conta. "Compus o samba-rap Língua e a convidei para cantar a parte melódica. Assim ela voltou a cantar e a receber atenção. Voltou à televisão e, depois, figuras tão díspares quanto Lobão e José Miguel Wisnik fizeram questão de trabalhar com ela", relembrou.

Sobre os últimos anos de Elza, Caetano comemorou o reconhecimento da amiga no cenário musical atual. "Recentemente, jovens músicos paulistanos (e ao menos um carioca que vive em Sampa) têm feito com ela o que ela merece (musicalmente). Morreu na glória a que fazia jus, numa idade respeitável, afirmando a grandeza possível do Brasil", declarou.

A jovem cantora Agnes Nunes também fez uma homenagem de despedida para a cantora. Elas cantaram juntas em uma live promovida pelo canal Multishow, em setembro de 2020, chamada Clássicos do Samba, junto com Seu Jorge; além de fazerem parte do documentário Abre Alas, lançado em dezembro de 2021 e que mostra Agnes em encontros com grandes nomes femininos da música brasileira.

Com Elza, a ligação de Agnes vem da infância: eram as músicas da dona da voz do milênio que a jovem cantava com ajuda do piano que a mãe lhe deu de presente. "Eu te amo pra sempre, minha grande rainha e fonte de inspiração. Obrigada por ter cantado comigo, por ter feito parte da minha história. Te honro até o fim, Elza", disse.

O rapper e ativista negro Emicida compartilhou uma foto com Elza em que ele está com o punho direito erguido ao ar, em um gesto de resistência negra. Os dois entoaram grandes canções em um projeto publicitário, em 2011, e se encontraram novamente quando a produtora de artistas e eventos do rapper, o Lab Fantasma, produziu uma linha de camisetas da cantora. "Obrigada por ser imensa. E através da sua imensidão ensinar que é sempre tempo de brilhar! Obrigada pelo respeito, carinho e risadas. Cada encontro foi único. Que a terra lhe seja leve Elza Soares. Que o universo receba com luz e festa a voz do milênio!", declarou.

A filha de outro grande nome da música brasileira, Elis Regina, Maria Rita, exaltou a trajetória de Elza. "Uma perda facilmente estimável: descansa uma das maiores do nosso país, representante da resistência e resiliência de seu povo. Dona Elza, missão cumprida!", declarou. "E agora começa a nossa missão: celebrá-la sempre! Que seja recebida em festa, essa incrível mulher de Luz!", acrescentou. Elza partiu um dia após o Brasil se unir em homenagens aos 40 anos da morte de Elis.

Gilberto Gil relembrou a expressividade do talento e da música de Elza. "Foram décadas e décadas cheias de vida, dias intensíssimos, noites extraordinárias, com música, com samba, com paixão, com tudo. Uma das grandes intérpretes do samba, uma das grandes renovadoras do samba, enfim", diz. Os dois estiveram juntos em setembro de 2020 em uma live a favor da demarcação de terras indígenas. O cantor afirma que o Brasil sente a partida da cantora. "Elza Soares. Acho que posso dizer que é muito grande a saudade que o Brasil inteiro vai sentir dela", acrescentou emocionado.

A sambista e deputada estadual Leci Brandão relembrou o título de "voz do Milênio" recebido por Elza na virada de 1999 e 2000, concedido pela BBC de Londres. "Quanta tristeza! A nossa diva fez sua passagem hoje. A voz do milênio, Elza é uma referência de mulher, artista e ser humano. Elza é eterna!", disse. Fã da cantora e amiga pessoal, Leci agradeceu a artista. "Eu agradeço por sua passagem iluminada nesse mundo. Que Olorum a receba em festa", declarou.

Zeca Pagodinho fez questão de se despedir da amiga, que já foi parceira de palco por diversas vezes. Zeca, inclusive, foi um dos cantores com quem Elza fez parceria no álbum de retorno da artista, o Trajetória, após 11 anos sem lançar um novo trabalho, em 1997. Juntos, eles entoaram e tornaram eterno a música Sinhá Mandaçaia, além de cantarem uma nova versão de O meu guri. "Grande Elza Soares, sempre muito divertida. Uma das melhores cantores de samba que já conheci. Minha queridona, vai com Deus!", se despediu Zeca.

Dois clubes de futebol também manifestaram carinho pela cantora. O primeiro foi o Flamengo (Clube de Regatas do Flamengo), time de Elza Soares. "O CRF lamenta profundamente a morte da magnífica cantora Elza Soares. Rubro-negra de coração, ela nos deixa no mesmo dia em que o craque Garrincha, seu grande amor, se foi há 39 anos. Que Deus conforte o coração dos familiares, fãs e amigos neste momento tão triste", disseram.

O Botafogo de Futebol e Regatas prestou homenagem à cantora e relembrou, também, a morte de Mané Garrincha, ídolo do time. "O Botafogo lamenta a morte da cantora e compositora, ícone para a música popular brasileira e ex-esposa de Mané Garrincha, ídolo alvinegro e maior jogador de todos os tempos. Por ironia do destino, ela nos deixa em um 20 de janeiro, mesmo dia que o craque se foi. O Clube deseja força e conforto a todos os familiares e amigos envolvidos nesta perda irreparável", declaram.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

 

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