Oscar

Produções de streaming se consagram e miram premiações do Oscar

A exemplo do caminho pavimentado nos festivais de cinema por produções criadas para a plataforma, o tradicional prêmio incorpora mais arejamento na lista dos indicados, com visibilidade para as exibições das plataformas digitais

Ricardo Daehn
Pedro Ibarra
postado em 22/03/2022 06:00 / atualizado em 23/03/2022 11:50
Okja quase foi vetado no tapete vermelho do Festival de Cannes -  (crédito: Kate Street Picture Company/Divulgação; DAVID LEE/NETFLIX; Searlight Pictures/Divulgação; Divulgação/Netflix; Netflix/Divulgação)
Okja quase foi vetado no tapete vermelho do Festival de Cannes - (crédito: Kate Street Picture Company/Divulgação; DAVID LEE/NETFLIX; Searlight Pictures/Divulgação; Divulgação/Netflix; Netflix/Divulgação)

É inegável que a presença do streaming é forte no cotidiano. Com mais opções de assinaturas disponíveis e catálogos robustos, as plataformas têm dominado o audiovisual e afetado todo ecossistema do mercado. As premiações fazem parte dessa conquista do streaming, já que, cada vez mais, os filmes lançados por lá têm ganhado prêmios e ocupado espaços que por anos foram das produções com estreia exclusiva nos cinemas.

Um dos principais termômetros para essa dominação das plataformas é o Oscar. A premiação mais importante do cinema norte-americano relutou, mas teve que ceder espaço para que as produções de streaming pudessem brilhar. Apesar de nunca ter dado o prêmio de melhor filme para uma produção lançada diretamente nos serviços digitais, a Academia agraciou longas de streaming em praticamente todas categorias.

Quem abriu o caminho para as plataformas foi a Netflix. A gigante do streaming foi a pioneira em inscrever filmes para premiação e em 2014 já disputava a categoria melhor documentário com o longa The square. Em 2017, Manchester a beira-mar, da Amazon Prime Video, conquistou a proeza da primeira indicação das plataformas a melhor filme. De lá para cá, longas como Roma, Dois papas, O irlandês apareceram nas listas de indicados e levaram prêmios importantes como melhor direção e melhor atriz coadjuvante. Com a pandemia e a liberação da necessidade de estreia em salas de cinema para disputar os prêmios da Academia, o streaming ganhou ainda mais força e longas como Som do silêncio, Os 7 de Chicago e Mank figuraram na lista, recheada de streamings, mas ainda assim vencida por Nomadland, lançado exclusivamente no cinema e posteriormente na plataforma Hulu.

Este ano, metade dos indicados ao prêmio principal da noite tiveram lançamento direto no streaming ou em formato híbrido, tendo sido lançados no cinema e streaming ao mesmo tempo. Ataque dos cães, Duna, King Richard: criando campeãs, Não olhe para cima e No ritmo do coração são os indicados das plataformas e disputam a estatueta da noite com Licorice pizza, Drive my car, Beco do pesadelo, Amor sublime amor e Belfast. Todavia, eles não formam dois grupos distintos, já que com a velocidade dos serviços a maioria deles estará disponível ainda no primeiro semestre para ser assistido em streaming.

Porém 2021 pode ser o ano da mudança de paradigmas no Oscar. Ataque dos cães é o franco favorito para sair vitorioso na noite. Indicado para 11 estatuetas, o longa se sagrou vencedor de praticamente todas as disputas prévias da temporada de premiações. Com foco para Jane Campion, a diretora mais cotada para melhor direção e que também fez a limpa nos eventos anteriores e conseguiu se tornar a primeira mulher a concorrer duas vezes a categoria de direção no prêmio da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas.

Pelas beiradas 

Um marco no cenário da relação entre os grandes festivais de cinema e as produções impulsionadas com dinheiro das empresas de streaming se deu em 2015, quando Beasts of no nation, criação da Hastings, alcançou a listagem de títulos escalados para a competitiva no Festival de Veneza. Antenado com a ponte entre streaming e cinema, o Festival de Berlim, nos últimos três anos, vem alavancando o debate. Inicialmente, escalou para o júri do segmento de curtas personalidades como Jeffrey Bowers, curador da Vimeo e parceiro de eventos reluzentes como o Festival de Toronto, e junto dele, Vanja Kaludjercic, (à época) diretora de aquisição da Mubi, uma plataforma que vem revitalizando o fator diversidade, entre os filmes que coproduz. Ainda em Berlim, 2020 marcou debates que revigoraram a relação entre mercado, emissoras e empresas de produção — tudo norteado pela crescente demanda por conteúdo serial (no preenchimento da grade das plataformas). A palestra A Revolução do Streaming apontou estratégias das produtoras independentes, as indies, na era do streaming. Mas, frente a teorias, o streaming se adiantou ao debate e, pela prática e diante das necessidades, se desenvolveu exponencialmente frente à realidade imposta na vivência da pandemia.

A origem de muita controvérsia, no tema, se deu em Cannes, há cinco anos, quando Okja (do mesmo premiado Bong Joon Ho, de Parasita) competiu a Palma de Ouro, ao lado de outro filme com produção da Netflix: Os Meyerowitz: Família não se escolhe, de Noah Baumbach. Diante do anúncio de que a dobradinha de fitas seria lançada diretamente na plataforma, sem passagem pelos cinemas, as exibições resultaram em vaias. O próprio presidente do júri (à época), Pedro Almodóvar, se posicionou contra o filme. A obrigatoriedade de exibir necessariamente os concorrentes, quando do lançamento, prossegue.

Com as voltas do mundo, Thierry Frémaux, diretor do Festival de Cannes, reservou para 2020, uma prometida guinada nas relações com a Netflix, mas na impossibilidade da edição presencial, limou a possibilidade de ele trazer fitas da gigante empresa, ainda que em caráter fora de competição. Prevista para o período entre 17 a 28 de maio, a 75ª edição de Cannes conservará a Netflix fora dos holofotes franceses: a expectativa era que Blonde (no qual Ana de Armas vive Marilyn Monroe) abriria o evento.

Na queda de braço entre as exibições tradicionais e a voracidade no avanço dos serviços de vídeo sob demanda, a Netflix saiu de cena da disputa pela Palma de Ouro (em Cannes) e, numa escalada, emplacou Roma no Festival de Veneza (ação revertida em nada menos do o Leão de Ouro no evento) e obteve a chancela de melhor filme pelo Círculo de Críticos de Nova York (a instituição de especialistas mais antiga dos EUA). O filme rendeu ao diretor mexicano Alfonso Cuarón o Oscar de direção. Outro filme que competiu em Veneza com produção atrelada à Netflix foi História de um casamento, em 2019.

Explosão e lacuna

Quando o filme de Spike Lee, em 2020, Destacamento blood (2020), faria a estreia em Cannes, o evento se viu cancelado pela explosão do coronavírus, e lá esteve a Netflix possibilitando o streaming. Termômetro para o Oscar, o National Board of Review consagrou Lee como melhor diretor do melhor filme, que ainda emplacou três categorias do prêmio do Sindicato dos Atores. O mesmo National Board havia consagrado, no ano anterior, O irlandês (uma sofisticada narrativa de Martin Scorsese distribuída pela Netflix) como melhor filme, prêmio ainda reforçado pelo Círculo de Críticos de Nova York. Scorsese, entretanto não venceu nenhuma das 20 indicações somadas nos campos do Oscar e do Bafta (considerado o Oscar britânico).

  •  2022.. Cultura. Cena do longa Ataque dos caes, da Netflix.
    Ataque dos cães: do streaming ao Oscar principal? Netflix/Divulgação
  • Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence em Não olhe para cima
    Não olhe para cima traz figurões para o Oscar, como Leonardo DiCaprio Divulgação/Netflix
  • Destacamento Blood, do diretor Spike Lee, saiu de Cannes para chegar ao catálogo da Netflix DAVID LEE/NETFLIX

Festivais de relevância como Sundance e Cannes têm abraçado filmes que contam com coprodução de plataformas de streaming como a Mubi, que já conta com 12 milhões de membros, e dona de filmes que circulam em 190 países. Muitos destes títulos apostam na diversidade como Farewell love, a estreia na direção de Ekwa Msangi, americana com origens na Tanzânia. Noutros títulos da Mubi, um encontro numa estação de transporte aproxima uma trans de sua latente paixão (tema do filme Port authority, que esteve na mostra Um Certo olhar, em Cannes) e o etarismo se vê abolido pelo esforço de uma filha (a trama desenvolvida em One fine morning, o oitavo longa de Mia Hansen-Love).

A escalada da Netflix nos festivais internacionais trouxe Menção honrosa, em Toronto, para o curta documental Os Capacetes Brancos, título com o qual a empresa californiana veio a faturar o Oscar. A retirada de campo da empresa Netflix no certame de Cannes ainda hoje traz um ensinamento de modernização para o duradouro evento. Enquanto grandes estúdios hollywoodianos balançam em administrar o lançamento de títulos, numa conjuntura incerta, apostas como Titane (o vencedor Julia Ducournau, num júri integrado, entre outros, por Kleber Mendonça Filho, vencedor do Grande Prêmio do Júri por Bacurau), ao menos no Brasil, ganham estreia diretamente nas plataformas. Realmente, outros tempos demarcam a posição de Pedro Almodóvar (outrora, detrator da Netflix) de se render ao streaming, com o longa Mães paralelas (vencedor de melhor atriz para Penélope Cruz, no Festival de Veneza), e ainda ver o filme valorizado no Oscar 2022.

Regras da vida

Apesar de uma exceção para a premiação de 2021, ainda há a obrigatoriedade de uma estreia exclusiva de pelo menos sete dias para que o filme se torne elegível para o evento da Academia. Com isso, as produções originais dos streamings, na maioria das vezes, estreiam apenas pelo tempo mínimo em cinemas pelo mundo e imediatamente depois são disponibilizadas em suas respectivas plataformas. Ataque dos Cães e Não olhe para cima, por exemplo, chegaram a ficar duas semanas em cartaz no Brasil antes de estrearem na Netflix.

 

Palavra de especialista

Ilda Santiago*

Os festivais, assim como o mercado das salas de cinema, estão passando por um profundo momento de transição, acelerado pela pandemia e suas consequências nos hábitos de consumo. Poderíamos dizer que é natural uma maior produção e consequente reconhecimento de qualidade em muitos desses filmes hoje nas plataformas. Certamente, neste momento, uma porcentagem maior de filmes de alto nível são investimento de produção ou aquisição dos streamings. Entre Mães paralelas, Drive my car ou Ataque dos cães não resta dúvida sobre a qualidade oferecida pelos serviços de streaming. Acredito que, com um alívio no processo pandêmico, e o retorno do público às salas, um novo equilíbrio vai voltar a acontecer. Mas o alto investimento dos streamings não vão parar e isso é bem-vindo para a indústria como um todo. O cinema é feito de muitos investimentos e riscos. E o público também se diversificou e aumentou. Mais opções de histórias e filmes é benéfico para todo mundo.

* Diretora de programação do Festival do Rio

 

 

 

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Seguindo a regra

Apesar de uma exceção para a premiação de 2021, ainda há a obrigatoriedade de uma estreia exclusiva de pelo menos sete dias para que o filme se torne elegível para o evento da Academia. Com isso, as produções originais dos streamings, na maioria das vezes, estreiam apenas pelo tempo mínimo em cinemas pelo mundo e imediatamente depois são disponibilizadas em suas respectivas plataformas. Ataque dos Cães e Não olhe para cima, por exemplo, chegaram a ficar duas semanas em cartaz no Brasil antes de estrearem na Netflix

 

Serviço

Serviço
Oscar - 94º Prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas
Este domingo no canal TNT e no streaming Globoplay. Transmissão a partir das 22h.

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