Há 12 anos, a diretora Marcela Lordy decidiu transformar em filme Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, ficção de Clarice Lispector, perpassada de muita subjetividade e pouca ação. Na trama, Lóri, uma professora do ensino fundamental angustiada por liberdade, vive uma rotina entre a escola e encontros fugazes que não a conduzem a construir laços afetivos. É ao encontrar Ulisses, um professor de filosofia provocador, que ela aprende a amar e a enfrentar a própria solidão.
Em determinado momento, Marcela resolveu jogar o livro para o alto, incorporar experiências pessoais e circunstâncias do nosso tempo para fazer uma adaptação livre, que, no entanto, mantém o espírito libertário da ficção de Clarice. O filme, protagonizado por Simone Spoladore e Javier Drolas, ficou pronto precisamente no início da pandemia, em 2019, mas, só agora, chega aos cinemas.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres estreou na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2020, e foi um dos três filmes mais votados. Em seguida, passou por 15 festivais em vários pontos do mundo. Recebeu Menção Honrosa para o filme e Prêmio de Melhor Atriz para Simone Spoladore no 22 Bacifi, festival americano. E, nesta entrevista, ao Correio, a diretora Marcela Lordy fala sobre o desafio da adaptação cinematográfica, a relevância de Clarice para a afirmação feminina e a árdua aprendizagem do prazer que o filme propõe.
Entrevista//Marcela Lordy
O Livro dos Prazeres é muito introspectivo. Como traduzir isso em cinema?
Realmente, esse livro é um grande fluxo de pensamento, começa com uma vírgula e termina com dois pontos. Há doze anos anos quando tive a ideia de adaptar, eu era um pouco ingênua. Tentei ser racional e espremer tudo que tinha de ação. A primeira versão do roteiro era pura literatura, e cinema é movimento. Tivemos dificuldade em seguir. Mas aí chegou a Josefina Trotta, argentina, superprodutora e especialista em adaptação literária. Chega um momento que tem de jogar o livro pela janela e contar o que eu vivi. É uma adaptação bem livre, parece a história de um par romântico, mas é sobre uma mulher independente em uma sociedade patriarcal. Lori é uma professora que dá aulas sem prazer, não se identifica nem com as pessoas com quem transa. Até sacar a força dela como mulher. No livro, é mais Ulisses quem conduz a ação, mas, no filme, a narrativa transcorre sob o ponto de vista dela. Adaptamos ao nosso tempo, ela tem o amor incondicional dos alunos, o pai é um suposto bolsonarista e o irmão é um agroboy.
Qual a relevância do filme para colocar em primeiro plano o ponto de vista da mulher?
No geral, as mulheres da ficção de Clarice têm uma epifania e querem mudar a vida delas. Mas, no Livro dos prazeres, Clarice inverte a narrativa clássica em que Penélope espera Ulisses. É Ulisses quem fica esperando e ela faz a grande volta. Quem sai para conhecer é a mulher. Faz uma revolução interna, para dentro, vai se fortalecendo, ganha uma autonomia muito forte. É diferente de outras mulheres porque é o único livro da Clarice que tem um final feliz. A aprendizagem leva a um ponto de vista dela, de mulher, que passa a ser sujeito dos prazeres e da vida. Você consegue entender o prazer do ponto de vista da mulher. Como ela fala de amor, dialoga com a breguice. Ao mesmo tempo, é uma quebra do amor romântico. Ela diz em um dos subtítulos: "era uma vez uma princesa que se salvou sozinha." Ela tem um relacionamento com uma mulher e o Ulisses com um homem. Pediram a Noemi Jaffe uma lista dos mais importantes livros de política do mundo e um dos que ela citou foi O livro dos prazeres.
O que é a aprendizagem dos prazeres, segundo Clarice?
Acho que é esse equilíbrio de olhar para dentro, a solidão não ser uma coisa negativa, ter prazer com você. As primeiras cenas de sexo do filme são curtas. Mas, no final, tem uma cena de sexo com um plano sequência gigante. Não decupei quase nada. Mostra que é preciso estar pleno para ficar com alguém. Não achar que é o outro que vai curar as suas feridas. É você que vai curar.
Não pode se fechar muito a ponto de achar que não precisa de ninguém. A Lóri vai descobrindo o mundo até experimentar as coisas com o frescor de serem inéditas. Em A paixão segundo G. H., Clarice se desconstrói inteira. Vejo na cinematografia brasileira as mulheres, quase sempre, se ferrarem. Quero ver as mulheres vibrando. É um filme de cura, Lori se cura.
Como foi a experiência de dirigir os atores em O livro dos prazeres?
Foi muito interessante. A Simone Spoladore é introspectiva e silenciosa. Eu havia feito alguns monólogos para teatro com ela. Logo na sequência, fiz também a série A musa impassível. Quando pensei no filme, logo a convidei. Ela demorou um pouco para entender a personagem Lori, que é uma sereia, seduz os homens, que vão morrendo sem ar. Por isso, a certo momento, ela diz que "amar não é morrer". O ator , que faz o Ulisses, é dócil, tem cara de fogo, mas é portenho e arrogante. O irmão da Lori, interpretado por Felipe Rocha, é o mala que representa a família bolsonarista, ele a critica, diz que a maquiagem é ridícula, que ela passou dos 30. Fomos trazendo novas camadas para a história.
Como você vê essa história de Clarice virar celebridade citada na internet?
Ela é profunda, misteriosa, você não lê uma primeira vez e sente tudo. Clarice brinca com os clichês, e é mais inteligente e astuta do que imagina. A gente lê Clarice desde a adolescência porque ela é tema de vestibular. É uma das maiores escritoras latino-americanos. Eu acho que esse filme ajudar a mergulha muito para ser visto no cinema. Fui assistente do Walter Salles, quando viu, ele disse que o filme é muito corajoso, vai entrando devagar nos poros do espectador. Tem muito silêncio.
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