Literatura

Livro 'Como se fosse um monstro' traz a maternidade em perspectiva

Novo romance da brasiliense Fabiane Guimarães é mergulho numa forma particular de encarar a maternidade e agarra um leitor com uma narrativa sobre barriga de aluguel

Nahima Maciel
postado em 01/03/2023 06:20 / atualizado em 01/03/2023 06:33
 (crédito: Alexia Fidalgo)
(crédito: Alexia Fidalgo)

Foi durante uma viagem do Rio de Janeiro para Brasília que Fabiane Guimarães se deparou com a ideia de escrever um livro sobre barriga de aluguel. Enquanto voava de volta para a terra natal, a autora leu uma reportagem da BBC sobre o tema. Ficou obcecada e resolveu pesquisar mais sobre o assunto. Deparou-se então com uma série de reportagens sobre um caso que veio à tona recentemente, quando vítimas de quadrilhas que vendiam bebês em Santa Catarina reencontraram os pais biológicos. Era 2019 e Fabiane encontrou ali material para o substrato do romance Como se fosse um monstro, publicado esta semana pela Alfaguara e disponível nas livrarias a partir de sexta-feira.

Nascida, criada e formada em Brasília, Fabiane criou Damiana, moça pobre de família humilde do interior de Goiás que se torna barriga de aluguel para um casal rico do Lago Sul. Para contextualizar o romance, a autora decidiu localizá-lo nos anos 1990. "Pesquisando sobre o assunto, percebi que a gente teve muitos casos como esse na época. E pensei 'tem tudo a ver com os anos 1990, com a terra sem lei que era o Brasil, e continua sendo porque essas coisas continuam acontecendo'. Já trabalhei como jornalista e dei notícia de tráfico de bebês", conta a autora, formada em jornalismo pela Universidade de Brasília (UnB) e ex-funcionária de uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU) dedicada aos direitos reprodutivos.

Como se fosse um monstro é desses livros de leitura fácil e rápida, mas que não deixa de plantar na cabeça do leitor uma série de questionamentos sobre a maternidade, a vulnerabilidade feminina e os direitos das mulheres. Depois da primeira barriga de aluguel, Damiana decide entrar para o esquema ilegal de venda de sua capacidade reprodutiva. Em troca de quantias substanciais, a personagem gera sucessivos bebês para casais que não podem gesta-los naturalmente. Damiana não desenvolve laços com as crianças, tem a certeza de que não quer ser mãe e sabe muito bem da ilegalidade da prática, mas faz disso uma profissão e comove o leitor com seu jeito particular de encarar a maternidade, ou a falta dela.

Nem toda mulher quer ser mãe, é o que tentam nos dizer os personagens de Fabiane. Se Damiana sofreu violência — e é ingênuo pensar que não, mesmo diante do consentimento em se tornar barriga de aluguel —, ela também reflete sobre a violência que é impor a ideia de maternidade como o destino ideal e completo de toda mulher. É diante da personagem Gabriela, jornalista que acaba de abortar voluntária e solitariamente ao descobrir uma gravidez indesejada, que Damiana confirma seu próprio entendimento da feminilidade e da falta de vontade de ser mãe. É uma equação violenta essa proposta pela autora, mas é também um jogo de soma e subtração de desejos complexos que são injustamente regulados por convenções políticas e religiosas.

Fabiane conta que sempre quis escrever sobre maternidade. "Mas não a maternidade típica, não gosto muito de seguir os clichês", explica. "Esse assunto da barriga de aluguel é abordado em outras obras, mas sob a perspectiva da mulher que quer ficar com o bebê, cria um vínculo e desiste. Eu não queria fazer algo nessa linha. O livro é sobre a maternidade, mas mais sobre a não-maternidade, o direito das mulheres de escolher se querem ser mães ou não." Damiana é uma personagem curiosa: não cria vínculo e isso é natural para ela, que não quer ser e não se considera mãe de nenhuma das crianças que gera. "Me fascinou como a personagem é ambígua. Ela começa a história como vítima, mas não é uma vítima. E faz questão de dizer. E não se arrepende. Ela subverte todas as questões: você não é um monstro se for uma mulher que não quer ser mãe. Uma coisa que ainda estamos discutindo, mas não deveríamos. É um tabu", lamenta a autora.

Falar de maneiras não convencionais de constituir uma família também era uma urgência na perspectiva da autora, sobretudo num momento em que o Brasil faz caminho de marcha a ré na questão dos costumes. "Família é quem cuida, quem dá o amor. E as personagens reforçam isso. A questão biológica não tem tanto impacto quanto a do amor. E todos os meus romances abordam a importância da família, que vai muito além do traço biológico", acredita.

Como se fosse um monstro é o segundo romance de Fabiane, que estreou com Apague a luz se for chorar, finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Candango. A história ambientada entre Brasília e Pirenópolis conversa com o romance mais recente na maneira como a autora constrói a narrativa. São livros fáceis de ler, uma característica da escrita da brasiliense de 31 anos. "Sempre me disseram que escrevo de um jeito fácil de ler, mas eu mesma não acho que é fácil escrever", avisa. "Na minha literatura, procuro sempre trazer uma linguagem bem simples. Acho sofisticado uma literatura que é limpa. As pessoas tendem a achar que, por ser uma linguagem mais simples, é fácil. Não é." Como se fosse um monstro foi escrito e reescrito várias vezes para chegar ao formato entregue ao leitor. Parte do processo, a autora revela, consiste em colocar tudo no papel e reescrever com a missão de limpar a narrativa.

Para ela, esse tipo de escrita é uma novidade na literatura brasileira. "Existe um trabalho de aparar e deixar apenas o necessário e isso agarra o leitor. Não é por ser uma linguagem simples e uma história envolvente que a história é rasa. É um tipo de literatura que nunca achei que teria lugar no Brasil. Ou tinha a que vende ou a que ganha prêmios, mais complexa. E sempre me vi como no meio do caminho", explica Fabiane, que ficou muito surpresa de estar entre os finalistas de dois prêmios importantes da literatura contemporânea.

 

Como se fosse um monstro - De Fabiane Guimarães. Alfaguara, 160 páginas. R$ 54,90

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  • Capa do livro Como se fosse um monstro, de Fabiane Guimarães
    Capa do livro Como se fosse um monstro, de Fabiane Guimarães Foto: Alfaguara
  • Escritora Fabiane Guimarães: questionamentos sobre a imagem da mulher
    Escritora Fabiane Guimarães: questionamentos sobre a imagem da mulher Foto: Alexia Fidalgo
  • Escritora Fabiane Guimarães
    Escritora Fabiane Guimarães Foto: Alexia Fidalgo

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