A arte produzida em Brasília é singular. A amplitude do céu e do horizonte, os espaços planos, a arquitetura planejada e a geometria evidente forneceram para os artistas da cidade um repertório de ideias e conceitos que dificilmente aflorariam fora da capital de Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Essa combinação guiou o curador Paulo Herkenhoff no projeto Brasília, a arte da democracia, que ocupa, a partir de hoje, um espaço destinado à arte na Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro.
A exposição reúne 180 peças de 80 artistas da capital — ou que nela habitaram — e faz parte de um projeto de mapeamento da arte brasileira que já rendeu mostras sobre a Amazônia e o Rio de Janeiro. As próximas serão sobre Piauí, Bahia e São Paulo. Para Brasília, depois da exposição, haverá um livro em dois volumes preparado ao longo dos últimos três anos para abordar, além das artes visuais, a música, o teatro, o cinema e a literatura. "A ideia é mostrar Brasília como uma cidade cultural. Ela nasce como uma sucessão de atos culturais artísticos e se torna um campo propício para a explosão de uma arte singular e, ao mesmo tempo, universal", explica Herkenhoff, que já foi curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), do Museu de Arte do Rio (MAR) e da 24ª Bienal de São Paulo.
Essa produção é singular porque, define o curador, a cidade é ímpar, planejada, e os artistas interpretam esse planejamento e a arquitetura. Mas a particularidade vai além do planejamento e é fruto de uma dinâmica que lida com o Plano Piloto, mas também com todo o tecido urbano ao redor. "O DF é uma teia de cidades e é isso que vamos trabalhar", avisa. "Temos obras de Ceilândia e Brazlândia, e o livro terá um pequeno núcleo sobre Planaltina porque Cildo Meireles trabalhou e viveu lá um tempo e tem toda a produção contemporânea e histórica das ceramistas."
A empresária Vera Brant é outra referência estudada pelo curador para idealizar a exposição. "Ela é uma pessoa que teceu a cultura de Brasília, a cultura política, universitária, artística. Era amiga de JK, de ministros, diplomatas, artistas, músicos e trabalhou na universidade com Darcy Ribeiro. Escolhemos uma mulher para trabalhar essa questão de como as mulheres estão presentes em Brasília, apesar de a representação no Congresso ser insuficiente", diz Herkenhoff. Essa Brasília feminina é apresentada em uma seleção de 20 obras de Maria Martins, entre esculturas, desenhos, pinturas e gravuras.
A relação de Maria Martins com Marcel Duchamp também está representada na exposição com uma obra do francês, assim como Vera Brant, que aparece em cenas de inteligência artificial do trabalho de Christus Nóbrega. Esculturas da Marianne Peretti, Mary Vieira e Maria do Barro também fazem parte desse núcleo histórico feminino. Herkenhoff inseriu ainda uma boneca karajá para simbolizar a presença indígena. "Brasília foi o lugar que melhor divulgou a arte indígena. Quando foi inaugurada, houve intenso comércio de objetos indígenas", conta o curador, que esteve na capital na segunda metade da década de 1960. "Eu mesmo comprei uns objetos indígenas na época e as bonecas karajás passaram a ser muito consumidas por turistas e entraram nas casas brasileiras a partir de Brasília", lembra.
Ainda como parte das referências históricas estão uma pintura da execução de Tiradentes feita por Alberto da Veiga Guignard e que pertencia a JK, obras de Alfredo Ceschiatti, Bruno Giorgi, Lina Bo Bardi, Rubem Valentim, Burle Marx, Athos Bulcão, Lucio Costa e de Niemeyer.
Da contemporaneidade, o curador trouxe nomes como os dos fotógrafos José Roberto Bassul, Ricardo Stuckert, Zuleika de Souza, Gabriela Biló, Joaquim Paiva, Orlando Brito, Milton Guran e Vik Muniz, que fez uma imagem do Congresso Nacional com os cacos de vidros quebrados nos palácios durante a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Nomes importantes da produção brasiliense, como Galeno, Adriana Vignoli, Wagner Barja, Usha Velasco, Patrícia Bagniewski, Bené Fonteles, Hi da Cei, João Angelini, Helô Savoy, Luciana Paiva, Marcela Campos e Christus Nóbrega também estão na mostra. Deste último, o curador selecionou um trabalho feito com inteligência artificial no qual Lucio Costa consulta uma anciã negra que, em vez de jogar búzios, joga ossos para ajudar o urbanista e encontrar a localização perfeita para o Plano Piloto.
Paulo Herkenhoff cita o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty para explicar como encara a ligação de Brasília com a produção artística. Ponty dizia que a montanha Sainte-Victoire sempre esperou pelo pós-impressionista Paul Cézanne, autor de uma série de pinturas que retratam a famosa paisagem. "Brasília esperava por artistas. A arte urbanística e arquitetônica da cidade esperava por outros olhares e esse olhar evidentemente é marcado pelo céu, pela amplidão dos espaços, pela lógica das quadras, por essa rede de 'cidades-satélites', pela questão do poder", compara Herkenhoff. "Brasília também é uma cidade que reúne o Brasil, uma cidade da esperança, que surge como uma utopia que se atualiza."
Brasília, a arte da democracia
Curadoria: Paulo Herkenhoff.
Visitação até 14 de julho, de terça a sexta, das 10h às 20h, e sábado, domingo e feriado das 10h às 18h,
na FGV Arte (Praia de Botafogo, 190, Rio de Janeiro).
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