Cinema

Murilo Salles aborda degradação ambiental no filme 'Uma baía'

Com foco nos mecanismos de exploração do homem e da natureza, o documentário 'Uma Baía', centrado em área do Rio, apresenta as silenciosas inquietações do diretor Murilo Salles

Cena do documentário Uma baia, em cartaz no Liberty Mall 
 -  (crédito:  Divulgação)
Cena do documentário Uma baia, em cartaz no Liberty Mall - (crédito: Divulgação)

Complementares a um meio altamente industrializado, a força e a intensidade de trabalhadores que lidam com o rudimentar, a coleta de mexilhões e caranguejos, ocupam, ao lado dos conceitos de reciclagens e diversões simplórias (como a pesca), o centro do novo documentário de Murilo Salles. Meio degradados de Niterói, Ilha do Governador e Paquetá ocupam as telas, no longa atualmente em cartaz no Liberty Mall. Abarrotado de silêncio, o filme traz um ensaio, melhor, oito, de solitários. "Gosto de personagens solitários. Há o filho em Nunca fomos tão felizes (em torno de um militante político), meu primeiro filme, preso num apartamento e ainda a Camila de Nome próprio (2008), presa em seu próprio umbigo (de vício na expressão meramente virtual). Em Uma Baía, a ideia de solidão emana da própria baía, de paraíso que eternizou-a (o navegador) Américo Vespúcio, para aquela que os cariocas olham com tanto desprezo hoje", conta Salles, em entrevista ao Correio.    

Ao retratar parte da rotina da Baía de Guanabara, o  mesmo diretor de Faca de dois gumes (1989) e Como nascem os anjos (1996), lembrado ainda pela direção de fotografia do clássico Dona Flor e seus dois maridos (1975), buscou as "essências poéticas" do cotidiano da pesca, do faz-tudo, do pedreiro, do cavalo e da eterna condição de se aguardar a ação de Deus. Junto com abstração, as observações do diretor vasculham heranças daqueles à extração do pau-brasil, à época do antepassados tupinambás e tamoios. A agitação das ruas e das feiras ainda enquadra um lazer momentâneo para aqueles descendentes das dezenas de aldeias originárias das regiões e ainda dos dois milhões de africanos escravizados que adentraram o país pela baía.

No cômputo de tanta labuta, Murilo aponta para algumas regalias. "Pobres podem e devem ser felizes. Graças a um milagre, temos a presença das culturas que nos formaram, com seus ritos e procedimentos, que nos fazem aprender a alegria, a sensualidade, as danças, quer dizer, o uso do corpo que fala, que nos tira da melancolia portuguesa. E da truculência selvagem imposta pelo país que mais se serviu da escravidão. Pobres, muitas vezes, são mais felizes que ricos. Quando usufruem das qualidades de suas naturezas", demarca.        

Entrevista // Murilo Salles, cineasta

Um barbeiro, visto no filme, fala em "sempre alguém fazendo uma porcaria (no Brasil)"... Quais são as maiores, no momento?

A paralisia. A alienação. A regressão. A violência. A desigualdade social. O racismo. E, ainda, a presença da escravidão. O estado de estagnação sempre foi historicamente muito desejado, como forma de controle. A porcaria sempre foi essa. Controlar a miséria para dominar. Como isso é pré-histórico. Parece simplismo meu, não? Mas esse país com suas desigualdades, cada vez maiores, é que está no centro disso tudo.

No filme, você trata do mecanizado e da força de tração do homem. Crê que se possa falar em Da utilidade dos homens, num contraponto ao clássico Da utilidade dos animais (de Carlos Drummond de Andrade)? Homem é peça a mais na engrenagem?

Há sabedoria, nisso. Fui capturado pelo que há. Amo fazer documentários, pois são construções que me fazem pensar. Tento absorver aquilo que se apresenta diante de mim, filmo o máximo que posso. Depois aprendo e descubro o filme a partir do material. É, sim, um filme sobre essas entranhas que mantém os seres vivos, humanos e animais acorrentados nas garras da repetição. Repetição como neurose civilizatória.

Teu olhar mudou, passada a pandemia?

Esse filme foi rodado e montado de 2016 até o fim de 2019. A pandemia entrou no Brasil logo em seguida. Fomos selecionados para festivais somente em 2021. Esse olhar de varredura já existia, portanto, antes da pandemia. É um excelente conceito, este, para o meu cinema, que trata de pensar antes e depois que a imagem é impressa. Pois, para promover a varredura, escolhemos o que queremos registrar. E, depois de registrar, decidimos o que vai ficar, construindo, enfim, a narrativa do filme.

O lazer segue inacessível para a camada retratada no filme, que, como dito, "não tem" até mesmo para a compra de um peixe, para durar "dois dias". Como acha que o cinema chegue aos retratados?

Não chega. Nem importa porque tem o pastor (explorado no filme), tem a televisão, tem o futebol. É primitivo. Estamos em tempos regressivos. Hoje, o cinema como entretenimento é caro. Nosso filme olha para um estrato social, que habita e trabalha com a Baía de Guanabara. É uma região submetida a uma ancestralidade estratificada. Alguns dos personagens estão em estado de miséria, mas outros não. Aliás, a maioria não está. São excelentes trabalhadores. Poderiam ir ao cinema. Mas também estão 'tomados' por uma letargia, presos ao eterno retorno que dita seus 'destinos'.

Qual a tua admiração pelo José Carlos Avellar e por que lhe dedicou o filme?

É mais que admiração. Avellar foi uma espécie de tutor. Ele, excelente fotógrafo, sempre com sua Leica em punho, me fez descobrir o poder da imagem. Uma das âncoras de sua obra crítica é uma ode à imagem. Com ele, aprendi que a imagem pensa. Mais até, que imagem é pensamento. Uma Baía professa isso em cada frame de sua existência. E, mais, descobri que som pensa, diverso do diálogo, que apenas informa. Avellar foi fundamental com sua crítica e amizade para ser quem sou hoje. Uma tardia dedicatória, mas esperava o filme certo.

Julga que seu filme seja difícil e para um público específico?

Isso é difícil de afirmar, porque o que faço é trazer qualquer espectador para uma situação imersiva, para além do observacional, que pode se tornar chato. Tento colocar o espectador dentro da 'questão' do personagem. O problema, sim, trata-se de um problema, é que Uma Baía foge dos cânones do documentário narrado, do talking- heads (com juntamento de depoimentos incessantes). Então, isso causa estranhamento no espectador que é 'público' de documentários. Tenho certeza de que um espectador sem vícios vai acompanhar e se entregar mais à imersão proposta, do que o espectador 'cult' que já traz dentro de si o senso comum do documentário clássico.

A questão da fotografia é imperativa; houve cuidado redobrado?

Venho e sou daí, da fotografia! E as fotos de Robert Rauschenberg (precursor da pop art) me influenciaram, ainda jovem. E fotografia virou minha carne, meu corpo, minha escopia, isto é, como olho o mundo e a vida. Os fotógrafos que trabalham comigo são, em sua maioria, ex-assistentes de fotografia. E, como diretor, fiquei muito 'marcado' pelo trabalho do Dziga Vertov com documentários. Gosto de 'aplicar' meus fotógrafos, de fazê-lo a enxergar do jeito que desejo, para aquele determinado trabalho. A partir daí, ou os deixo livres inteiramente, ou acompanho enquanto diretor. Sempre mesurpreendo no sentido positivo. Dá certo!

Um dos momentos mais potentes do filme fala de reciclar e do teor da arte... Como acredita que aquelesujeito (reciclador) das latinhas se relacione com o impacto que ele causa?

Ele se relaciona muito bem! Ele é apaixonado por aviões. E mora na Ilha do Governador. É um mecânico de motocicletas. Vivem bem, em relação a outros personagens. Constrói um hidroavião basicamente com detritos encontrados no lixão da Ilha. Certamente, ele não entende a ironia que faço com o estatuto da 'grande arte' contemporânea, tento compará-lo com o trabalho do Rauschenberg, ondeele é a 'baixa arte' para a fala americana. Porquê? O sujeito entra também como símbolo do uso da traquitanagem. Somos o país da traquitana que não dá certo. Vemos o hidroavião parado, carcomido. Não decola.

 

 

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postado em 22/04/2024 04:25
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