"É verdade, sem falsidade alguma, verdade absoluta", assim está escrito na primeira frase da Tábua de Esmeralda, redigida por Hermes Trismegisto. O texto, que data aproximadamente do século 7, é considerado o manifesto que deu origem às noções de alquimia e à ideia da transformação de elementos fruto de uma mescla de misticismo, arte e noções científicas muito popular na Idade Média pela crença de que era possível transformar metais menos preciosos em ouro. Há 50 anos, a alquimia ocorreu na música brasileira e Jorge Ben Jor mostrou uma verdade absoluta com o disco A tábua de esmeralda, um divisor de águas para o cantor e para a cultura do país que foi lançado em maio de 1974.
O álbum foi o décimo primeiro da carreira do músico, que até os anos 1980 era conhecido apenas como Jorge Ben. O álbum inaugura uma fase mística da carreira do cantor e é o último no qual propõe como instrumento principal o violão, antes de migrar para a guitarra elétrica. Faixas como Os alquimistas estão chegando os alquimistas, Menina mulher da pele preta, Eu vou torcer, Zumbi e O namorado da viúva são destaques em um dos conjuntos de obra mais aclamados da música nacional. Em 2007, o disco foi eleito o sexto melhor da história do Brasil em uma lista curada pela revista Rolling Stone.
A música brasileira da época vivia uma fase interessante em que o misticismo estava em alta. Raul Seixas e Paulo Coelho estavam no ápice da parceria exotérica com o álbum Krig-Ha, Bandolo!, de 1973, e o Tim Maia já lia "O livro" que mais tarde desembocaria no Universo em Desencanto narrado em Racional vol.1, lançado em 1975.
A tábua de esmeralda chegou na crista da onda. "Na virada dos anos 1970, com a disseminação dos ideais da nova 'Era de Aquarius', muitos artistas em todo o globo passaram a questionar sistemas filosóficos e religiosos estabelecidos, procurando respostas em ensinamentos esquecidos e escondidos. A alquimia, para o Jorge Ben, é essa fonte inesgotável de sabedoria ancestral", explica Mateus Campos, jornalista, pesquisador e autor da dissertação Salve, simpatia: fé, misticismo e religiosidade na lira de Jorge Ben Jor (PUC-Rio 2020). "Creio que o disco só foi possível porque as gravadoras estavam apostando nesse tipo de material. Na época, Jorge recebeu carta branca de André Midani, executivo francês da Phillips que era muito amigo do cantor e estava conectado às tendências do pop global", complementa o especialista.
Musicalmente, o disco também tem nuances únicas. O poder dele mora na simplicidade em contar histórias complexas. "Do jeito manso dele, ao mesmo tempo parecendo sem sentido, conseguia falar de questões sérias como se estivesse brincando. E no âmbito musical, sempre com um tratamento rítmico muito original, misturava a influência original da bossa nova com o rock e o funk/soul num resultado bastante vigoroso, em contraste com uma interpretação normalmente doce e suave. Isso é bastante único na nossa música", explica o historiador da música e jornalista Rodrigo Faour.
O poder de Jorge Ben se dá com o instrumento na mão e a lírica no mundo. O cantor vive da simplicidade dos acordes e carrega o público consigo nas próprias histórias. A tábua de esmeralda resume a forma de ser do artista, um dos maiores e mais respeitados da música brasileira. "Com um poder de síntese fenomenal, o Jorge consegue deglutir esse conhecimento milenar e transmiti-lo da maneira mais eficiente possível: através de canções que ficam gravadas na cabeça de seus ouvintes", reflete Mateus Campos.
Brasília em tons esmeraldinos
Por ser um disco que marcou época, muitos artistas de todo o Brasil são influenciados por esse trabalho que traz uma mistura de bossa nova com samba, rock, soul, funk e com a síncope que só a música brasileira tem. Em Brasília, artistas da atual geração bebem constantemente nessa fonte deixada por Jorge Ben.
Pacífico, artista solo que também faz parte do projeto instrumental Aiure, conta que o álbum foi a entrada dele nas maravilhas da música brasileira. "É o disco que me abriu as portas para me aprofundar na discografia do Jorge Ben, junto do África Brasil. De certa forma, foi ele que me trouxe para uma busca mais profunda pela música brasileira, porque até então meu eu adolescente estava ali enfurnado no rock progressivo", lembra. O artista pontua que Jorge Ben é muito influente para a história do rock brasileiro, mas ultrapassa qualquer gênero. "O violão dele é mágico, um ritmo incrível e suas melodias são muito únicas. Ele é capaz de transformar qualquer frase em música. Ele deu uma cara muito brasileira ao rock. E tenho pra mim que sua influência vai muito além do rock. Quando escuto os clássicos do pagode 90 não consigo deixar de enxergar uma forte influência de Jorge Ben nessas músicas, seja no samba rock do Molejão ou no Raça Negra", avalia.
"O disco tem uma crueza poética, de performance e de timbres, ao mesmo tempo que algumas músicas têm reverb que se você fecha o olho te levam pra outra dimensão. Essa organicidade, crueza e ao mesmo tempo refinamento são super referência", destacam Ayla Gresta e Gustavo Halfeld, do duo YPÚ. Brasilienses, eles se juntaram após atuarem como membros de uma banda no filme Ainda temos a imensidão da noite (2017), longa premiado no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Em 2023, lançaram o primeiro disco juntos, intitulado Paranoar, e optaram por uma gravação analógica justamente para remeter a trabalhos antigos como A tábua de esmeralda. "Tábua é passado, presente e futuro, dentro dele tem uma riqueza pra ir se aprofundando que não só nutre a gente como dá aquela vontade de se aventurar", complementam.
Outro nome da cena que tem cada vez mais investido em músicas no violão e em uma psicodelia à brasileira é Lucas Maranhão. Em carreira solo desde 2022, quando lançou o disco Verso reverso, o artista disponibilizou recentemente em streaming o single Roda gira, que tem forte influência do movimento iniciado por Jorge Ben há 50 anos. "Esse álbum é muito potente e, ao mesmo tempo, descontraído, é inovador e mesmo assim utiliza elementos tradicionais da nossa cultura. Isso é uma das coisas que almejo como compositor e produtor musical: meu sonho é compor canções atemporais, potentes e inovadoras assim como Jorge Ben", conta o músico, que tem uma relação muito intensa com o disco. "Pessoalmente, tenho muitas memórias afetivas com o álbum, são inúmeras viagens de carro, festas com amigos, momentos com minha namorada e finais de tarde tranquilos com A tábua de Esmeralda como trilha sonora. Esse é o meu disco favorito do Jorge Ben Jor", acrescenta.
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