
Viagens, visitas a exposições e bibliotecas, e muito interesse por leituras de biografias. Na base da curiosidade, o escritor, poeta, professor e ensaísta Affonso Romano de Sant'Anna construiu não apenas a base intelectual, mas moldou com vivência o prazer de ser cronista, profissão que definiu como sendo "a da pessoa que interpreta o cotidiano"; mas num olhar que, eventualmente, poderia reluzir o lírico e o pitoresco. Com a mesma idade da esposa Marina Colasanti (morta há pouco mais de mês), Affonso morreu, aos 87, depois de passar quatro anos na cama, depois da piora no quadro de Alzheimer (diagnosticado em 2017). O velório do escritor será na Capela Histórica do Cemitério da Penitência (Caju), no Rio, onde Affonso morava desde fins dos anos 1960. Affonso morreu em casa, no bairro de Ipanema.
Título curioso está numa das crônicas (Poesia ameniza a morte) que escreveu para o Correio, do qual foi ferrenho colaborador entre entre 1992 e 2008, muitas delas reunidas, em 2011, quando lançou Ler o mundo, na Biblioteca Demonstrativa de Brasília (506/507). Em sintonia com a tradição nipônica, Sant'Anna discorre: "Ninguém gosta de falar de morte, mas o dia de finados vem aí, e queria lhes dizer que há na tradição japonesa uma corajosa e poética relação com a morte. Refiro-me a um ritual de preparar-se para a morte falando um poema. A poesia era a peça final do testamento. Podia isto se dar em casa ou no campo de batalha. Enfrentava-se a morte com a poesia na boca." O tema dos signos de uma extensão da vida e de ritual de cremação figuram em Sísifo desce a montanha (2011) feito de 98 poemas curtos.
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Biblioteca Nacional
Vencedor do prêmio Jabuti, com Vestígios (2006) — em que tateou mistérios da vida — e com a coletânea de poemas Que país é este? (1980), publicada na ditadura e que, graficamente, esteve nas paredes de centros culturais. Pai da atriz e diretora Alessandra Colasanti, Affonso injetou arte na família composta ainda pela filha Fabiana (morta em 2021) e por um necto. Presidente da Biblioteca Nacional, entre 1990 e 1996, Affonso afirmou políticas públicas de investimento em leitura, como no caso do Programa Nacional de Incentivo à Leitura.
Ex-diretor do Departamento de Letras e Artes da PUC-Rio, em meados setentistas, quase uma década depois herdaria a coluna de crônicas de Carlos Drummond de Andrade, no Jornal do Brasil. Para além de ter impulsionado a carreira da mineira Adélia Prado (apadrinhada pelo mestre), Affonso foi amigo do célebre poeta, que o apoiou na tese Drummond, o gauche no tempo, desenvolvida nos anos de 1960.
Canto e palavra (1965) foi o primeiro livro, editado quando tinha 28 anos. Livros como O enigma vazio — Impasses da arte e da crítica (2008) e A cegueira e o saber (2006) afirmaram a capacidade acadêmica de Affonso (com estudos formalizados até na UCLA americana, na qual lecionou), que teve entre alunos o compositor Fernando Brant. Diferentemente da ocupação como pastor, ensaiada pelos estudos no Instituto Metodista Granberry (Juiz de Fora), Affonso pendeu para a carreira crítica, com temporada na revista Veja, entre outras. Com talento forjado no Centro Popular de Cultura da UNE, o mineiro — nascido e formado na capital, em letras, nos anos de 1950 — dividiu conhecimento em passagens por universidades nos Estados Unidos, Dinamarca, Alemanha, Portugal e França.
Foi quase na maioridade da união com Marina, que, com a esposa, embarcou na publicação conjunta de O imaginário a dois (1987). Em 1994, para a Rocco, Affonso levou o texto Mistérios gozosos, composto de 72 crônicas em que abordava sentimentos e temas dos mais diversificados.
Brasília
Um capítulo à parte foi a ligação estabelecida entre o poeta e a capital. Exemplo da cortante crítica dele permeou a entrevista ao Correio, em 2000, quando se expunha a resistência carioca em parar de sediar órgãos federais. Affonso disparou que, em termos de centro econômico e político: "O carioca vai dizer que é o Rio, o paulistano, São Paulo. O mineiro pode chegar ao extremo de dizer que é Ouro Preto", divertiu-se. Na ocasião, argumentou que "se os três Poderes estão em Brasília, a capital é aqui, mas vai ter muita gente, porém, que vai continuar procurando a capital do Brasil nos Estados Unidos'', arrematou.
Numa relação estreita com Brasília, Affonso esteve, em 2000, para lançar, pelo projeto Luz da Cidade, um compêndio de crônicas digitalizadas, e eternizadas até com a participação da leitura de Paulo Autran. Os laços se estreitaram, via Correio, que, num projeto arrojado, em 2004, Affonso se revezou em espaço de crônicas assinadas por Ana Miranda, Chico Amaral, Ferreira Gullar e Moacyr Scliar.
Memórias de Clarice
Em algumas, reverberou a experiência no exterior, como lido em A dura vida do príncipe, derivada da análise de uma palestra do príncipe inglês Philip. Ouviu da realeza, em palestra da Universidade da Califórnia, que o lazer "seria condição destinada aos outros". A capacidade de empatia (casada com tiradas sublimes, tal qual: "Os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de ser cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles") brotava em textos como os de Entre leitor e autor (livro lançado em 2015), sobre a admiração externa e as memórias sobre Clarice Lispector, Fernando Sabino e Drummond. Admirava dos outros, "a invenção do modo de ver". Nisso, destacou num texto (de O Globo), o que seria uma "atmosfera de Clarice", definição veio irretocável: "(a atmosfera de Clarice é) de uma luminosa angústia e ansiedade, em que pontos luminosos furam a opacidade do instante". Vale a lembrança de que o escritor fez parte do seleto grupo de correspondência de Lispector, junto a amigos como Rubem Braga e Lúcio Cardoso. No filme Clarice Lispector: A descoberta do mundo, Affonso e Colasanti servem de cicerones aos espectadores.
Muito além de ocasionais foram as passagens pela cidade para comparecer na peça Banal, integrada pela filha, em 2010, no CCBB. Em 2003, na 22ª Feira do Livro de Brasília, Affonso se posicionou contra aspectos da arte contemporânea (a partir da "perda de rumo e de limites"). Com o livro Desconstruir Duchamp, lançado à época, previa uma revisão da arte moderna, necessária depois das revisões da psicanálise e do marxismo. Ele propunha o desafio de uma "reconstrução" para voltar ao passado. Partidário de avanços nas artes, ele novamente publicou O canibalismo amoroso, em 2013, revisto. Curioso, Romano louvou o Espaço Cultural T-Bone, do açougueiro Luis Amorim (na 312 Norte), circulou 19ª Feira do Livro de Brasília (em 2000) e soube saudar em escritos a ação da bibliotecária Conceição Salles (em Brasília), à frente de programa de leitura na Papuda.
Sempre ativo, marcou ainda presença no centenário de Drummond (em 2001), na 10ª Bienal Internacional do Rio de Janeiro. E, quando da morte de Fernando Sabino (2004), delicado, registrou em crônica a gentileza do amigo que, sem alarde nas doações anônimas para a causa dos menores abandonados. Aspectos de uma crônica que só poderia sair da caneta de Affonso Romano Sant'Anna.