
"O Milton Nascimento (na tela de cinema) não fala abertamente de tudo, mas está tudo colocado. Tudo fica presente, com as respostas devolvidas no tempo dele e, à sua maneira, as coisas e os temas começam a fluir muito melhor", comenta a cineasta Flavia Moraes, que, no documentário Milton Bituca Nascimento, compactou em duas horas de projeção em cinema, mais de 50 anos de carreira e ainda o material de uma extensa turnê vivenciada por mais de dois anos. O trajeto foi extenso, com equipes de cinema acompanhando o astro da música pela Itália, Espanha, Inglaterra, Portugal e as costas Leste e Oeste dos Estados Unidos, além de temporadas de captação de imagens em Minas Gerais, por grutas e cidades históricas, isso além de São Paulo e Rio de Janeiro.
"De tantas horas gravadas, digo que eu tenho uma série de Milton Nascimento, com este projeto de documentar os acontecimentos dessa turnê como colunas vertebral para o filme. Buscamos contar o seu dia a dia e os bastidores. Além disso, o encontro com os fãs e a emoção das histórias que vêm e são lembradas pelo caminho. Hoje, daria material para série. Temos mais de 100 horas de entrevistas. É uma loucura, uma quantidade impressionante", esclarece a diretora. Tons amorosos se sobrepõem aos informativos. Momentos raros e declarações chegam, em particular, com as cenas de uma entrevista com Milton, com a câmera operando na fresta da porta de um quarto, "como quase numa atitude de voyeurismo — e na qual ele soltou muito".
Na base da intuição e das sugestões de assuntos, "as coisas foram aparecendo", com diz Flavia Moraes. Orquestras em lugares tão díspares como Estônia e Ouro Preto emolduram a jornada que conta com mais de 40 depoimentos de personalidades como Sérgio Mendes, Paul Simon, Zé Ibarra e Herbie Hancock. Artistas plásticos, Osgemeos pintaram um painel que viajou com Bituca pelo mundo na última turnê. Do cenário do show brotou a ideia da diretora de agregar à narrativa uma imagem definitiva do cantor e compositor. "Os convidei (Osgemeos) para pintar uma revelação, um retrato do Bituca, já que, desde o início, considerei o processo de fazer o filme como um retrato. Um retrato cujas cores se definiram no nosso caminho de estrada", pontua a diretora.
Visões que alcançam até mesmo o fim da viagem, com Gilberto Gil e Carminho, além do próprio homenageado, que refletem sobre finitude da vida. Angústias e responsabilidades de esquadrinhar Bituca, que tem a doença de Parkinson, foram atenuadas pelo texto de apoio (criado pelo jornalista gaúcho Marcelo Féla e pela diretora) que nortearam a diretora (moradora, por anos, no exterior) no retorno "a imersão no centro do Brasil". A voz da leitura do texto coube à atriz Fernanda Montenegro. "Quer dizer: um texto lido pela Fernanda?! Poderia ser até o de um menu do café da manhã de hotel, que já vale muito...", diverte-se Flavia Moraes.
Entrevista // Flavia Moraes, cineasta
Há comparativo entre Milton, chamado de totem no filme, e o Dalai Lama?
Sou budista, estive no Nepal e na Índia. Tive o privilégio de, há 12 anos, acompanhar o Dalai Lama em visita feita pela América do Sul, com palestras (reunidas pela Palas Athena). O Dalai é um menino, um menino de quase 90 anos e o Milton é um menino de 82 anos, e eles vibram dentro de uma esfera singular, funcionam numa corrente de energia única. É mais fácil entender ambos a partir justamente da luminosidade, da presença e de suas forças.
Fatores de saúde complicaram as filmagens, e como ele trata o fim da estrada?
A saúde do Milton era uma preocupação grande, não só por, pessoalmente, ele ter saído da pandemia fragilizado. Ele ficou isolado, e o Bituca, isolado, se ressente muito. Ele vive dos amigos e da energia das pessoas em volta. Antes do filme, precisava justamente ouvir dele se, além da turnê, já com proporção de epopeia, ele teria vontade e disposição para fazer o documentário. Da turnê, primeiro, me respondeu que sim, de forma muito clara e contundente. Ele queria viajar e se despedir dos seus fãs — ter o olho no olho dos fãs — pela última vez. Quanto à disponibilidade, em termos mental e emocional, falei que iria dar muito trabalho, mas que só poderia fazer um filme à altura dele. Ele foi extremamente generoso. Um grande mérito do filme é mostrar a fragilidade sem nunca expor uma imagem fragilizada. Ele está gigante no documentário. Quanto ao fim, o filme, de certa forma, responde essa pergunta, quando a narrativa questiona: "o que é o fim para um imortal".
O filme anterior, de Ana Rieper, do Clube da Esquina, é complementar ao teu?
É um filme que está minha lista, por assistir. É óbvio que o Clube da Esquina seja dos momentos mais significativos da vida de Milton e da obra dele. Mas ela se espalha em outros aspectos e momentos muito importantes, inclusive, fora do Brasil. Explicações para ele, se encontra em Minas, no Brasil profundo. Com nosso filme, avançamos no leque daquilo que ia acontecendo na estrada. Gosto de pensar nesse filme como um road movie, orgânico na narrativa. É como se a gente pintasse um retrato do Milton com as cores que foram se definindo nessa estrada.
Qual o teu contato com a obra?
Milton faz parte da minha iniciação musical, quando eu tinha 12 anos. Minha primeira mesada, aos 12 anos, foi gasta com dois discos: The dark side of the moon (Pink Floyd) e Clube da Esquina. Depois, a vida me levou para outras culturas, outros rumos e países, e passei muito tempo sem ter contato com a obra do Milton. No meu retiro pandêmico, junto com o meu border collie, retomei Milton, como uma espécie de conforto de retorno, de retornar ao Brasil. Bituca me deu um espaço e uma confiança que ensinou muito. O homem é mais difícil de explicar e o filme trata disso. Ele é um cara de muitas camadas e costumo dizer que a explicação do Bituca não é racional. A gente não explica o Bituca — a gente sente.
Como foi o cuidado com o som?
O maior desafio do filme é a sua edição sonora. Eu tinha uma preocupação muito grande de que esse filme seria, principalmente, um filme para o Milton, e ele tem um ouvido absoluto. Cuidei de editar esse filme de forma que ele parecesse uma viagem musical, sem nunca cortar. A gente respeita os ciclos musicais, as frases musicais, os versos, mas vem intercalado com as entrevistas. Priorizando o sentido do que está sendo dito para que essas entrevistas pousassem dentro das músicas, como se fossem solistas também. É como um bordado: maior desafio foi como trazer essa quantidade de palavras... Quisemos um filme sem muita costura, para que ele abraçasse o espectador. Isso acontece com a música. Isso acontece com as entrevistas. Isso acontece com a maneira como orquestra trabalha, e ainda com a luz.
Existe uma dimensão de Milton que vocês não conseguiram contemplar com o filme?
Que pergunta difícil! Com certeza Milton é muito maior do que eu poderia eventualmente ter a pretensão de descrever integralmente. Milton ele tem muita propagação, daí termos optado por um recorte que, de certa, me protege. Quer dizer: a gente pintou um retrato dele com muito respeito com muita amorosidade. Mas eu tenho absoluta certeza de que ele tem facetas e tem uma amplitude que a gente, sequer, chegou perto.
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