Educação

Mestra da arte-educação, Laís Aderne terá vida contada em documentário

A professora Laís Aderne, que marcou várias gerações de brasilienses e deixou o legado de diversas instituições, é tema de documentário dirigido pelo filho Pierre Aderne

Waldir del Pina, Sílvia e Pierre Aderne -  (crédito: Kim -Ir-Sem)
Waldir del Pina, Sílvia e Pierre Aderne - (crédito: Kim -Ir-Sem)

A arte-educadora Laís Aderne é uma referência inescapável da cultura, da educação e ecologia no Distrito Federal e cercanias. Como dizia o poeta TT Catalão, ela ajudou a construir o sistema nervoso central de Brasília. Chegou a cidade em 1967 para a implantação do Ciem, o célebre colégio experimental do ensino médio, vinculado a UnB, com projeto pedagógico de Anísio Teixeira.  Em seguida, criou um projeto inovador no curso Pré-Universitário. Foi a idealizadora e dinamizadora do Ecomuseu do Cerrado e da Amazônia. Concebeu e coordenou o Festival Latino-Americano de Arte e Cultura (Flaac), a Casa da América Latina e a Feira de Troca de Olhos d'água.

Laís deixou um acervo amplo e diverso dos inúmeros projetos no campo da arte e da educação. Depois de pensar bastante sobre qual seria o melhor destino desse acervo, Pierre Aderne, compositor e filho da educadora, chegou à conclusão de que a forma mais democrática e de maior alcance seria realizar um documentário. E, assim, nasceu o filme A menina e o algodão, que  começou a ser filmado em Brasília e em Olhos d'Água. E, nesta entrevista ao Correio, Pierre fala sobre o documentário, o legado da mãe, as memórias e a atualidade das ideias da arte-educadora que marcou várias gerações de brasilienses.

Entrevista//Pierre Aderne


Por que resolveu fazer um documentário sobre Laís Aderne?
Para evitar que o acervo de minha mãe ficasse confinado ao campo intelectual, dentro de uma sala em uma universidade, o que também depois de muitas consultas, não encontramos interesse concreto de nenhum órgão público ligado ao seu trabalho.

Como percebe a importância da presença de Laís Aderne em Brasília?
Lais fez parte da construção cultural de Brasília, ou como dizia Tetê Catalão, ajudou a construir o sistema nervoso central de Brasília.

Em quais instituições ela atuou e que legado ela deixou?
Chegou a Brasília em 1967 na implantação do Ciem, a seguir ao Pré Universitário. Em 1974,  criou a Feira Do Troca em Olhos D’água. Em seguida,  foi professora do departamento de educação artística da UNB, idealizou e dinamizou  o Ecomuseu do Cerrado e da Amazónia, Casa Da América Latina, FLAAC - Festival Latino Americano de Arte e Cultura, implantou o curso de Educação artística da UFPB. Foi a primeira secretária de Cultura do Distrito Federal, priorizando a criação  de núcleos culturais no entorno de Brasília  como as ações em Samambaia e Santo Antônio Descoberto. O legado principal foi mostrar a importância do processo criativo, do resgate dos mestres e do repasse dos saberes .

Quais foram as pessoas marcadas pela ação de arte-educadora de Laís Aderne?
Laís não fazia nada sozinha, criava os projectos e logo provocava pessoas, alunos e professores a pensarem juntos seus projectos, que acabaram por fazer  parte da gênese desse tear comunitário cultural de Brasília. Pessoas como Sílvia Ortophe, Golda Pietrikokiski, Iara Pietrikoviski, Tetê e Verinha Catalão, Zaira Milne, Nira Foster, Waldir De Pina, Vladimir Carvalho,Kim Ir Sen, João Antônio, Wagner Barja, Guilherme Reis e tantos outros, como também artesãos de olhos d’água desde Dona Vilu, Dona Nega, até Fatinha …

Como foi a atuação de Laís Aderne em Olhos d'água no sentido de impulsionar a produção do artesanato e a formação de uma consciência ecológica?
Em Olhos d’água, começou a preparar a comunidade para a chegada da televisão. A barganha, a troca foi a ferramenta  que encontrou de mostrar para aquelas pessoas o que valia sua arte. Resgatou a auto-estima de um povo desacreditado, criou micro empresas para o artesanato local e mostrou que era possível ser sustentável com a produção de artesanato. Cinquenta anos depois, lá está Olhos d’água, a provar que é possível viver à margem desta sociedade. Uma das primeiras fiandeiras, hoje aos 90 anos, disse a mim nas filmagens: “A coisa que mais gosto de fazer na vida é fiar, só tenho pena que quando morrer não vou fiar mais” .


 Como foi a atuação de Laís na peça O homem que enganou o diabo e ainda pediu troco na inauguração do teatro galpão da 508 Sul?

Em 1974, ela inaugurou o Teatro Galpão, como diretora de “O homem que enganou o diabo e ainda pediu o troco”, em tempos duros de ditadura. Era preciso estrear antes para os censores. A peça foi a pedra fundamental do teatro de Brasília. A primeira peça a ficar meses em cartaz .


O que revelou a leitura dos diários de Laís?
 
Ela tinha dois diários, um de sonhos e outro do cotidiano. Utilizava esta ferramenta de decifrar os sonhos não só como uma porta de acesso ao inconsciente junguiano, mas como uma espécie de guia espiritual em que os campos racional e espiritual andavam juntos e a ajudavam a conduzir o dia a dia. O diário do cotidiano, uma espécie de thriller da política cultural brasileira e seus personagens , para o bem e para o mal, que também revela que depois da resolução no campo racional, a palavra final era sempre por meio de consultas ao I Ching, pêndulo, búzios no candomblé e alguns guias espirituais que faziam parte de sua vida. Todos seus projectos tinham um axé plantado .

O que permanece atual no pensamento e na ação dela e como pretende sintetizar tudo isso no filme? Que memória os entrevistados têm de Laís Aderne?

A narrativa do filme é uma síntese dos diários, de sua tese de mestrado de 1981 defendida em Birmingham, baseada na experiência de Olhos D'água e nas minhas memórias afetivas   de nosso convívio.
O mais interessante é perceber que afinal, como ela acreditava, de fato, que este modelo falido de sociedade que temos hoje, foi criado a partir da destruição das comunidades, das tradições comuns  do campo rural, onde o povo simples tinha casa, alguma dignidade e quintal para plantar e colher .
Os depoimentos revelam uma mulher forte que governava com alegria, uma feminista, ecologista, que na firmeza de sua voz tranquila, conduzia todas as questões com consulta e consciência comunitária. De como vencer a aculturação e ainda pedir o troco.

Homenageada em Olhos d'água

Laís Aderne é a homenageada edição especial da 100ª Feira do Troca de Olhos d'Água: Tradição e Cultura no Coração de Goiás, a ser realizada no próximo fim de semana, na cidade que fica 100km do Plano Piloto. Criada em 1974 por Laís Aderne, o evento se consolidou como um ponto de referência do artesanato goiano.  Durante três dias, a feira celebra a arte, a cultura e o espírito comunitário, reunindo artistas, expositores e visitantes.

Olhos d'água é um polo de artistas e artesãos. Além disso, se destaca pelo cenário bucólico e acolhedor. Uma das atrações é a tradição da gambira, o costume de trocar vestuários e objetos por artesanato e produtos diversos, em um encontro entre criatividade e tradição. Além disso, a feira apresenta uma programação de música, teatro e danças populares. No Memorial de Olhos d'Água, o visitante poderá apreciar um rico acervo sobre a história da cidade. Lá, existe um espaço especial dedicado a Laís Aderne, considerada precursora na defesa da integração entre arte, cultura local e meio ambiente.
 

 

  • Laís Aderne e o filho Pierre Aderne
    Laís Aderne e o filho Pierre Aderne Foto: Arquivo pessoal
  • Dona Nega das Bonecas no documentário de Lais Aderne
    Dona Nega das Bonecas no documentário de Lais Aderne Foto: Kim-Ir-Sem
  • Gravação das fiandeiras de documentário sobre Lais Aderne
    Gravação das fiandeiras de documentário sobre Lais Aderne Foto: Kim-Ir-Sem
  • A beleza da paisagem de Olhos d'água é captada no documentário
    A beleza da paisagem de Olhos d'água é captada no documentário Foto: Kim-Ir-Sem
  • Laís Aderne: legado de transmissão do conhecimento e de instituições da cultura
    Laís Aderne: legado de transmissão do conhecimento e de instituições da cultura Foto: Mila Petrillo/CB/D.A Press
postado em 02/06/2025 06:56 / atualizado em 02/06/2025 14:02
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