
Um combatente capaz de alegar ter visto a cara da morte, e regressado com a contradição de achá-la um "desperdício", mesmo que ela simulasse um "triângulo de luz, de prazer total". Uma das facetas de Cazuza é essa, representada no documentário Cazuza: boas novas, assinado por Nilo Romero e Roberto Moret, recém-lançado nos cinemas. Importante para o filme, o show O tempo não para (dirigido por Ney Matogrosso), revela, como diz Ney, um Cazuza "nu diante do Brasil". Daí, Ney ter optado por revelar, junto a uma luz branca (que causava o efeito de Cazuza estar preso a uma cruz), a estrutura fragilizada do artista que, como grafaram manchetes de jornais, foi "o poeta rebelde dos anos 80", um "guerreiro" merecedor de "descanso", após aguçar os instintos críticos de uma "geração". Autor de composições como Todo amor que houver nesta vida (com Frejat); Ritual; Blues da piedade (escrita em leito de hospital) e Cobaias de Deus (ao lado de Angela Ro Ro), Cazuza respondia, aos fins dos anos 1980, por shows, eventualmente, "sombrios", mas nos quais as pessoas "transcendiam", como pontua um entrevistado do filme.
Ladeado pela morte que, como cantou, a viu "viva", Cazuza, agora uma memória, no filme, segue reunindo confraria diversa: de João Rebouças (produtor de Burguesia) ao próprio cineasta Nilo (músico, produtor e diretor); passando por Frejat, George Israel e Léo Jaime, sem dizer da mãe, Lucinha Araújo. Internações, delírios, insultos, tensões, amorosidade, dissolução da burguesia e reconstruções de ideais: cabe tudo no novo documentário. Cazuza: boas novas disseca pontos como o choque causado na saída do Barão Vermelho, examina sensacionalismos da imprensa, expõe a agonia dos amigos, diante da doença, e não foge de relatos de polêmicas e das labaredas de amor junto a Ney Matogrosso. Entre lágrimas de emoções, Léo Jaime (defensor do "bolero em forma de samba") desponta para referendar a idolatria, em comum com Cazuza, pelo peculiar samba canção (apontada por Gilberto Gil), e entrega: "(Cazuza) via o samba-canção não como dor de cotovelo, e, sim, fratura exposta de cotovelo". Foi assim, exagerado, que partiu em 1990, aos 32 anos.
Entrevista // Nilo Romero, cineasta, músico e produtor
Qual a origem das imagens do filme e como administrou a remexida em arquivos?
O material, na verdade, foi um dos motivos que me deu vontade de fazer esse filme. Um motivo prático e sentimental. Na prática, já sabia que as imagens existiam e eu tinha a impressão de que se o filme não existisse talvez aquelas imagens ficassem ali para sempre porque elas precisavam de um contexto para serem usadas. Porque as imagens do George Israel eu conhecia, eu estava lá no dia, a gente tinha muito contato também, eu sabia que ele tinha aquelas imagens de camarim e bastidores. E eu sabia também que no dia em que ele foi à Polygram (hoje, Universal Music), ele tinha gravado em multitrack, então eu sabia que eu ia poder mixar aquelas imagens, as imagens de VHS. Eu sabia que eu ia ter o som potente de uma mix potente, tudo isso eu já sabia que eu ia poder fazer e conhecia também as imagens da Aninha Arantes, as do Cazuza na beira da piscina, lá fazendo ginástica. Na verdade, a gente usou muito pouca imagem comprada, mas tinham algumas que eu fiz questão: desde o começo, sabia queria usar aquela da Marília Gabriela perguntando, na lata, se ele tinha Aids. Aquilo sempre me incomodou muito.
Qual foi o grande desafio, com o filme, e que foco buscou, no material inédito?
O desafio foi o tempo, o tempo mesmo, porque o longa foi aprovado há cinco, seis anos. E aí veio outro governo, e não conseguíamos realizar. Depois, veio a covid e esse foi o grande desafio. A feitura do longa mesmo foi muito prazerosa. O foco dado para o material criado foram as entrevistas. Eu optei por ter pessoas mais próximas, quer dizer, eu entrevistei músicos que estavam na turnê, que podiam falar coisas que talvez uma celebridade não falasse, embora haja celebridades também, como o Ney Matogrosso e o Gilberto Gil. Procurei entrevistar pessoas que, efetivamente, tinham o que dizer para contar a história que eu gostaria de contar.
Como vê a mãe dele? Consegue ver refletidos valores e qualidades neles?
Se eu consigo ver refletir os valores e qualidades dele nela? Sem dúvida, sem dúvida nenhuma, eles são até muito parecidos, até na personalidade dela, a resiliência, a forma com que ela encara a perda do filho. A força que ela teve, ela transformou isso numa coisa legal. Nenhum de nós pode imaginar a dor que ela sentiu, e, de repente, ela fez uma fundação (Sociedade Viva Cazuza), ela investiu na memória do filho: ela não se entregou, e o Cazuza foi igual, na doença. Ele procurou se aperfeiçoar como cantor, como compositor — esse traço é muito parecido. Eles têm uma coisa espoleta que ela tem também. São pessoas intensas: são realmente muito parecidos. O Cazuza é bem mais parecido com a mãe do que com o pai, na minha opinião.
O distanciamento foi mediado pelo codiretor (Roberto Moret)? A relação pessoal tua com Cazuza impôs dilemas?
Moret foi bastante importante para mim como uma espécie de consciência, e também nas questões técnicas. Eu já sabia bem o que eu queria do filme e claro que as relações pessoais abriram portas com respeito. A primeira pessoa que eu procurei foi a Lucinha para ter a anuência dela e do Frejat, porque ele é que tinha a maioria das músicas. Foi o verdadeiro parceiro dele mesmo, e o Frejat estudou comigo, foi da minha sala, então a gente sempre cultivou uma amizade. Ele ajudou com ligações: o Ney eu não tinha muita intimidade, mas ele me conhecia, sabia quem sou. Ney foi o diretor do show O tempo não para, eu fui o diretor musical do show, e tinha produzido o disco Ideologia. Ele me falou que, aquela entrevista, só eu poderia ter feito, o mesmo dito pelo Frejat. Eu queria que o Frejat falasse da saída dele do Barão, e, visto o filme, você vê o Arthur Dapieve (jornalista) falando uma coisa muito bacana: que "o Cazuza nunca foi o coitadinho. Desculpa, ele nunca foi o coitadinho, então esse lugar não é o lugar dele, isso nunca foi um problema". Eu sabia disso e não precisei ter esse cuidado.
Teve pena de deixar de fora do filme algo? Ou absolutamente tudo e todos os ângulos se viram explorados?
É curiosa essa sua pergunta. Bom, no primeiro corte, a montadora foi a Jordana Berg (colaboradora do Eduardo Coutinho). Ela foi muito importante. E no primeiro corte, que tinha uma hora e cinquenta, estava maravilhoso, eu já pensava "caramba, o que a gente vai tirar daqui?!". Mas teve uma cena do Barão Vermelho, que era o Barão tomando café da manhã com a Glória Maria, eles cantando o Bilhetinho azul, e depois o Cazuza batendo um papo com a Glória Maria — imagina, maravilhoso. Mas a gente teve que tirar, porque é uma cena da Globo, e a verdade é que a gente não tinha mais dinheiro (no filme) para botar essa cena. A gente teve que escolher que cena tirar, e tiramos essa. É a única coisa do filme que eu gostaria de ter colocado, e que eu não coloquei — o resto tudo está ali.
Para além da crueldade da imprensa; ela também projetou Cazuza, o apoiou incondicionalmente, na carreira tão vibrante?
O que deu lastro à carreira tão vibrante?! Acho que foi a personalidade dele, única, desafiadora, porque bons compositores existem vários, você pode gostar mais de um, gostar de outro, mas uma pessoa com a personalidade do Cazuza, transgressor, e ao mesmo tempo doce, uma pessoa que todo mundo adorava. É isso: acho que ele se doou. E, claro que parte da imprensa, isso vai sempre existir, vai sempre existir, eu acho que essa coisa da internet, pelo menos que agora tem essa pseudo-imprensa, essas pessoas que, enfim, influenciam. Influenciam e falam o que quiserem. O que aconteceu com ele, pelo menos serviu para dar mais responsabilidade à imprensa estabelecida, não é? E eu acho que a gente precisa dela, mas em todos os lugares que você vai, vai ter gente que tem respeito e tem gente que tem escrúpulo, tem gente que não tem respeito, tem gente que não tem escrúpulo, que foi o caso da Veja, né? Que também é retratado lá no filme.
Com um pai tão poderoso, ele relutava para não ser visto como um apadrinhado sortudo?
O Cazuza não relutava. O João, o pai, é que não queria parecer, enfim, que estava dando mole para o filho. Isso não era uma questão, porque eu acho que ele já sabia o que ele queria, entendeu? Eu acho que ele tinha dimensão que ele ia conseguir o que ele queria; com o pai, ou sem ele. O pai é que segurou, mesmo assim. O primeiro disco foi gravado num dia, (um dia de estúdio), e é isso. Agora, como a Lucinha fala: ele era antítese do pai, mas, ao mesmo tempo, eles tinham um amor e uma admiração mútua que era uma coisa incrível. Não dava para você não reparar isso, por mais que eles vivessem às turras.
Como estaria Cazuza no propalado tempo dos 'amores líquidos'? Ele foi um precursor disso? E que Brasil ele deixou (com direito a cusparada na bandeira), e qual acharia hoje em dia?
Em relação aos amores líquidos de hoje, eu acho que ele estaria bem, porque para garotada de hoje isso não é uma questão, não é?! Claro, tem a garotada mais conservadora, mas assim, o que eu vejo na maioria dos garotos, nas meninas, isso de gênero não é mais uma questão. Sabe?! E ele já era um pouco assim, né?! Ele estaria muito bem em relação a isso. Quanto ao país que ele deixou, eu acho que ele encontraria um país, um país pior, sinceramente, eu acho que não tem um aspecto, um aspecto sequer, que hoje está melhor do que antes. Infelizmente, nessa história, o país do futuro, o Brasil é o país do futuro. Eu acho que a visão é que no futuro todos os países iam estar que nem o Brasil, e não o Brasil estaria que nem os outros países, infelizmente.
Cazuza teve um lado B? O que só a intimidade dos anos de amizade legou na tua memória?
O lado B do Cazuza, inclusive, foi uma das coisas que me deu vontade de fazer o documentário também, era essa pessoa entre o artista, que é carismático e, bom letrista, bom cantor, tudo isso. Na minha opinião, eu acho ele maravilhoso, sempre achei, e o louco, o cara que detona, que cospe na bandeira, ali no meio tem uma pessoa, uma persona. Como eu posso dizer? Até as seis horas da tarde, ele era o filho que toda mãe gostaria de ter, porque ele era muito educado, assim, muito. Tinha muito respeito com os mais velhos. Meu pai, por exemplo, adorava o Cazuza. Ele tinha aquela coisa do personagem da noite, era uma coisa, mas ele durante o dia, ele era uma pessoa super cool, super. E não tinha essa coisa de papo-cabeça com ele, ele era um cara que acordava, ele lia os jornais, ele lia a Folha, lia O Globo, na época, o Jornal do Brasil, e a conversa, embora ele tenha lido bastante, ele leu muitos livros, muitos poetas e muitas, enfim, romancistas, o papo com ele era sempre um papo coloquial, ele não tinha aquele papo existencialista.
Diversão e Arte
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