
"Existe, no feminino, uma vontade enorme", observa a celebrada diretora Anna Muylaert, às vias do lançamento do mais recente filme, já exibido no exterior, A melhor mãe do mundo. Foi nos bastidores de uma produção para a Gullane Filmes, que ela mesma especulou do mercado, junto da coordenadora de pós-produção Patrícia Nelly: "Qual a diferença entre diretora e o cineasta homem?", disse. A resposta foi curta: "Não há dúvidas de que a mulher trabalha muito mais. Ela cuida muito mais do detalhe; o homem deixa mais para eu (Patrícia, no caso) fazer!". Nisso, a cineasta de filme como Mãe só há uma e Que horas ela volta? detecta: "Acho que a presença da mulher no cinema, em geral, talvez seja a coisa mais humana agora acontecendo".
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Sara Rocha, Rafaela Camelo, talentos locais, e a rede de nomes como Fernanda Faya, Victória Álvares, Tatty Vianna, Carla Camurati, Sandra Kogut e Eliane Caffé perfazem a lista de criadoras enfileiradas, em corrente de novos filmes, num cenário em que, no exterior se notam talentos da mesma tendência, com filme de impacto de Petra Costa (na Netflix, presente com o brasileiro Apocalipse nos trópicos) e Maura Delpero, vencedora de Veneza (com o filme Vermiglio em cartaz no Cine Cultura; confira entrevista, abaixo).
Inspiração não falta em Anna Muylaert, que dá exemplos da primeira paixão por Lina Wertmüller e da brasileira Ana Carolina, "uma forte referência para mim", como diz. A melhor mãe do mundo circulou por pontos da Alemanha e França. "Acho que, apesar de o filme ser brasileiro, com muita cor local, música brasileira, atores brasileiros — ele é uma história universal e poderia passar na China. Em qualquer lugar, as pessoas reconhecem muito fácil essa mãe desamparada (a protagonista) porque ela está em tudo, com várias formas, mas em todo o lugar", pontua Muylaert.
Tratando de pobreza, com o novo filme, Anna conseguiria rimar o chamado "sonho de princesa" com "realeza"? "Sim. Acho que esse filme traz, de todas as personagens que já criei, a que está em maior situação de vulnerabilidade, mais também é a mais forte, e digna. Na trama, há o homem que tenta prostituí-la, ao que ela responde: 'Você vai ficar com vergonha (disso)'. Ela é grande!", ressalta. Quem seriam as grandes, entre os pares, colegas de profissão. Na ponta da língua, estão Marianna Brennand (do longa Manas) e Petra Costa. "Mas acho que a atuação da mulher no cinema é muito maior do do que apenas na direção. Tem direção de fotografia, produção. A mulher entra para o cinema com muita seriedade e com muito coração", demarca.
Dentro da linha de diversificação, impressa pelas mulheres, está a produtora de cinema e diretora geral do Cine Brasília, Sara Rocha, atualmente, bastante empolgada com o reflexo da exibição do filme infantil que ela encampou, Thiago & e Ísis e os biomas do Brasil. "Sem dúvida, é uma característica que eu, que sou mãe, tive oportunidade de, nos últimos 10 anos, me aproximar de uma maneira mais efetiva da produção de conteúdo infantil. Tenho no repertório afetivo filmes como A dança dos bonecos. Nisso, estão fatores que contribuíram para uma vontade e vocação de poder produzir. A partir do Cine Brasília, vejo a dificuldade que temos em períodos do ano de poder ter uma diversidade, uma oferta qualificada e numerosa de títulos infantis para serem programados. Batalho na construções de política pública sociais e audiovisuais para formação de novos públicos, e o cinema é ferramenta poderosíssima de conscientização, a partir do lúdico", explica.
Trupe feminina
Exemplo claro da disponibilidade feminina de talentos se encontra na composição do longa A natureza das coisas invisíveis, feito com talentos candangos, que participou do Festival de Berlim (segmento Generation) e estará, em agosto, na seleção do Festival de Gramado. Há a produtora Daniela Marinho, companheira regular (da diretora Rafaela Camelo), Sarah Noda, diretora de arte, e Pâmela Germano, preparadora de elenco (e atriz em curtas anteriores de Rafaela Camelo). "São algumas entre tantas mulheres que estavam no filme, compondo equipes de direção, som, montagem, fotografia, arte. Foi uma escolha natural para mim, pois quis trabalhar com pessoas que eu admirava e sabia que tinham uma boa interlocução comigo", observa Rafaela.
A comunicação deste cinema independente feminino se revelou para o público, no exterior. "Ele tem elementos especificamente brasileiros, como por exemplo em relação ao misticismo e benzedeiras. Fiquei surpresa disso não ser um empecilho para o público de fora. As cenas das crianças sempre geram muitas risadas. As pessoas se emocionam muito nas cenas da Aline Marta (uma bisavó, na trama). Estou ansiosa para saber como o público de Brasília vai reagir", comenta a diretora.
A natureza das coisas invisíveis, como adianta a realizadora, trata de emoções e sentimentos universais como luto, saudade, solidariedade e amizade. "O maior valor de tudo está no afeto, nas relações entre mulheres de diferentes gerações. Pelas reações do público até agora, percebemos que ele tem um apelo especial entre mulheres. Embora isso não tenha sido uma intenção inicial, trata-se de uma obra com um elenco majoritariamente feminino e que fala sobre cuidado, o que acaba levando também a uma reflexão sobre esse papel historicamente atribuído ao feminino", reflete.
Entrevista // Maura Delpero, diretora
Como foi tratar dos tempos de guerra, em cinema, com o longa-metragem Vermiglio?
Quando comecei a escrever o roteiro do projeto, me perguntaram se eu não achava que um filme sobre Guerras Mundiais e o período delas não seria anacrônico. E eu disse: "Escute, guerras são sempre muito, muito contemporâneas". E, daquele momento em diante, foi piorando, piorando. O mundo anda mais cheio delas. Então, infelizmente, eu não acho que somente aquele tempo que foi de pressões e que diferisse de agora. Há uma diferença entre, por exemplo, a condição das mulheres naquela época. O mundo está melhor agora, com menor opressão para elas. Mas a situação sobre comunidades sufocadas pela guerra é algo muito contemporâneo. Então, é difícil passar anos escrevendo e filmando algo que tem uma tristeza em si, mas também, a vida continua, e a vida é engraçada e feliz — despontam momentos preciosos; eu tento colocar toda a vida no filme. Você tem momentos leves também, com direito a desejo. Você tem as coisas bonitas dos seres humanos, que ainda acontecem, apesar da guerra. O filme toca corações e mentes humanas por tratar de um dos eventos capitais da humanidade.
Pesa um quê de conto, na trama, não?
A ideia era combinar as duas coisas: uma representação muito realista daqueles anos, porque o filme traz do inverno de 1944 ao outono de 1945. Então, exatamente um ano, e o espectador nota as quatro estações. E o realismo veio de muitas pesquisas. Lidamos com arquivos, fotos, objetos e entrevistas. Era fundamental captar a atmosfera específica. E, para mim, prevalecia a aura das pinturas. Então, eu enviei para a direção de fotografia muitas referências a pinturas, pois queria que o filme tivesse sua própria identidade. Não exatamente um conto de fadas, mas sim, uma reforçada atmosfera pictórica.
Como viu tua atuação nas bilheterias?
A Itália trouxe a bela surpresa nas bilheterias. Sinceramente, sempre confiei no público, o que produtores e investidores tinham lá os pés atrás. Estipularam que não teria tantas possibilidades comerciais devido ao fato de não termos um nome estelar no elenco e que pesava ele ser falado em dialeto. Mesmo na Itália, usamos legendas — uma fator restritivo de público. Espero que este filme traga bom exemplo para encorajar os financiadores, porque realmente gerou grande propaganda 'boca a boca' e muitas pessoas corresponderam. Foi um grande sucesso. Fomos os primeiros, ao lado do (hollywoodiano) Coringa: delírio a dois, por muitas semanas, e houve vida realmente longas filas, o que nem sempre acontece com produções locais. Geralmente, transcorre, com atores muito, muito amados e com filme de teor bastante comercial. Não é tão fácil ter um bom faturamento da Itália. Vejo tudo como um bom exemplo para futuras produções.
Seu filme é estarrecedor. Como percebe influências?
Não sou particularmente influenciada por grandes mestres do cinema; não comecei, na universidade, em cinema. Veio a literatura, primeiro. Aprecio, claro, nomes do cinema. Mas quando é hora de escrever e filmar, chegam referências, muito misturadas, de literatura, pintura e músicas. Quando o filme saiu, muitas pessoas pensaram em comparações Ermanno Olmi, especialmente, com o filme A árvore dos tamancos (1978), por ter narrado parte pouco representada da Itália: o norte, com toque rural. Temos maneira de trabalhar semelhantes, junto a atores não profissionais da região, mesclados com atores profissionais. É uma bela e boa referência. Também pensei no Michael Haneke, de A fita branca, isso por causa de aquele filme se passar em interior austríaco, na Primeiro Guerra Mundial, mas há a situação com a grande família, e os pais sendo importantes e rudes. Então, há algo ali. Sim, gosto de Ingmar Bergman. Acho que trago ainda algo das paisagens de Jane Campion, como pinturas, de O piano (1993).
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