
Tudo começou com um curta que, mais tarde, rendeu material para uma série e desaguou em um longa-metragem sobre o impacto da construção de uma hidrelétrica na vida de uma população ribeirinha. Xingu à margem, selecionado para o 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e com exibição marcada para hoje na mostra competitiva, é um mergulho numa história que começa em 2015 e com perspectiva de fim inexistente.
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O diretor Wallace Nogueira esteve pela primeira vez na região de Volta Grande do Rio Xingu há uma década. Naquela época, as obras para a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte já haviam começado e Nogueira trazia para o primeiro plano,no curta A última volta do Xingu, o impacto socioambiental do empreendimento na vida dos indígenas Juruna e Arara. O pequeno documentário acabou disponibilizado no programa Vídeo nas Aldeias, para o qual o diretor foi convidado a dar aulas. "Belo Monte estava começando a ser construída, ainda não tinha a barragem, o rio era grande e caudaloso, tinha muito peixe, e a usina vinha com uma promessa de riqueza. A gente filmou a aldeia ainda com palhinha, aquela comunidade bem presente", lembra. Foram quase 10 anos dando aulas de audiovisual para os indígenas e em contato com as comunidades ribeirinhas da região, uma experiência que deu início à produção de uma série documental ainda inédita.
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Foi nesse período que Nogueira teve a ideia de fazer um documentário em longa-metragem com foco na população ribeirinha especialmente afetada pela barragem, que destruiu casas, modos de vida e de sustento dos povos instalados à beira do Rio Xingu. "Era tanta destruição acontecendo, tanta desconsideração com aquele povo. Os ribeirinhos são descendentes de indígenas. É uma ligação direta com o que eles chamam de indígena puro. A gente sabe que a miscigenação, a junção de povos indígenas e negros se deu em alta na região. E são povos muito impactados pela hidrelétrica. Tem muita violência concentrada, e violência de Estado. É sobre isso que o filme fala", avisa Nogueira, que convidou Arlete Juruna, uma de suas alunas no Vídeo nas Aldeias, para dividir a direção de Xingu à margem. "Ela se encantou com o projeto. Viu que estava acontecendo uma grande injustiça e o audiovisual, para ela, passou a ser uma arma para falar para o povo dela e do povo dela".
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O documentário acompanha o encontro da ribeirinha Raimunda Gomes da Silva com Arlete Juruna e traz para a tela uma conversa na qual elas refletem sobre o ciclo de injustiças gerado pela usina do ponto de vista dos indígenas e dos ribeirinhos. Nogueira ouviu falar de Raimunda pela primeira vez ao ler o livro Banzeiro Òkòtó — Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo, no qual a autora, Eliane Brum, dedica um capítulo à história da ribeirinha. Raimunda perdeu a casa para a hidrelétrica e quase perdeu o marido, que teve um AVC dentro do escritório da Norte Energia, concessionária de Belo Monte, após ter a residência queimada com tudo dentro. "Dona Raimunda foi a única a conseguir fazer uma queixa na Polícia Federal e, a partir disso, foi perseguida, ameaçada de morte. Era líder comunitária e a Norte Energia a desacreditou, os outros ribeirinhos ficaram com raiva dela, porque ela protestava, dizia que as casas que a empresa prometeu construir eram mentira", conta o diretor. "Toda essa situação foi geradora de uma grande doença mental, física e da própria floresta. O lago de Belo Monte e todo o rio na frente de Altamira virou um grande reservatório que matou centenas de árvores e bichos."
O filme tem a riqueza destrutiva da hidrelétrica e a ribeirinha, que o Estado tentou apagar e adoecer. E onde a compensação da destruição foi uma arma a mais para que eles, ribeirinhos, se destruíssem. O filme vai apresentando essas faces da destruição, apresentando esses personagens. O filme não quer discutir geração de energia, progresso e riqueza. O filme quer justiça na medida em que pede mais cuidado no trato com aquelas comunidades em regiões ermas, onde a justiça não chega.
Se os indígenas perderam sua paz, os ribeirinhos nem foram considerados. Para eles, rolou um racha porque a forma que a Norte Energia achou de vencer a luta foi instalar a discórdia. Vizinhos receberam valores de indenizações diferentes, rolou uma grande confusão interna entre eles que fez com que chegassem a se matar. Foi o maior índice de suicídio no Brasil nessa época e essa é uma das temáticas do filme, entrevistamos um jovem que tentou se matar três vezes. Teve, sim, a questão indígena, mas e o povo ribeirinho, que não tem órgão regulador?
O longa se concentra em um recorte da história que é a relação entre indígenas e ribeirinhos e de como os indígenas, mesmo recebendo compensação ambiental, se deram mal nas esferas sociais, porque a própria violência de Altamira chegou nas aldeias. É mais fácil se esconder em territórios desconhecidos do que na cidade. Então a própria hidrelétrica e a violência que ela provocou na região deu abertura para que o crime organizado entrasse ali. A hidrelétrica tinha o dever, por exemplo, de cuidar do lixão de Altamira, e não cuidou. Fizeram um aterro sanitário em que o chorume cai no rio e contamina o peixe, a água. Outra coisa foi a desestruturação social. Por exemplo: dou R$ 500 mil para o cacique convencer o povo de que a hidrelétrica é uma coisa legal. E ele fica com o dinheiro. E toda essa violência vem com essa coisa de prometer mundos e fundos ao mesmo tempo em que tira a água do rio. Tem aldeia em que o rio está muito baixo, a água muito quente e não tem peixe.
Serviço
21h
Mostra Competitiva Nacional
Dança dos Vagalumes — Maikon Nery
Xingu à margem — Arlete Juruna e Wallace Nogueira
Filmes da noite
No Cine Brasília (EQS 106/107), às 21h, exibição do longa Xingu à margem, de Wallace Nogueira e Arlete Juruna. Sessão acompanha o curt aDança dos vagalumes, de Maikon Nery
Ingressos: R$ 20
No Complexo Cultural Planaltina, às 20h, a mesma programação terá entrada livre.
Diversão e Arte
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