
Medo, agonia e solidão podem até ter enriquecido a literatura do influente escritor Ignácio de Loyola Brandão, que, aos 89 anos, ganhou do filho André, diretor de cinema estreante e fotógrafo, um retrato na telona no qual se destaca seu aspecto "solar". O documentário Não sei viver sem palavras (na programação da 49ª Mostra de SP), pelo que conta André, "não tem nem saudosismo, nem nostalgia". "Retratamos o desejo do passado como uma força presente, constitutiva, viva. Quase indígena, talvez. Mas sem nenhum apego de se ficar preso ao passado. Pelo contrário, o filme busca trazer à tona uma inquietude e um amor por estar vivo que acompanham meu pai", descreve.
André Brandão destaca que uma das últimas frases do filme é 'quero viver'. E foi nesse afã que Ignácio de Loyola estabeleceu na obra conexões com a atualidade de temas como autoritarismo e colapso climático, num quadro esmiuçado pelo filho: "Integrando sua obra, na base da sutileza, ainda há a confusão entre realidade e ficção". "Talvez o filme seja uma tentativa de encontrar palavras e imagens que sintetizem a vida e a obra dele. Não sei se consigo atrelar imagens específicas à literatura do meu pai como um todo. Penso em elementos, sagacidade, perplexidade, fantasia, entre outras coisas. Num primeiro momento do filme, acho que imagens e palavras nasceram junto. Só agora me dei conta de que esse filme, de fato, nasceu junto com o meu nascimento", pontua André, inspiração para texto do pai, quando do nascimento. "Meu pai escreveu, nos dias em que acompanhou minha mãe no quarto da maternidade, o conto A montanha mágica — O nascimento de André; nele, refletia sobre o nascimento, a vida, a morte e o cinema!", conta.
Mesmo que fale "bem mais de livros" com o pai, o cinema é ponte, para André, que diverte-se: "Meu pai só começou a escrever críticas de filmes para ter a credencial do cinema e poder ver todos as produções que quisesse". Recentemente, muitos dos livros de Loyola estão licenciados para produtoras e diretores, que estão trabalhando em projetos. "O Zero (com o diretor Eugênio Puppo empenhadíssimo), Não verás país nenhum, Dentes ao sol, O beijo não vem da boca e Os olhos cegos dos cavalos loucos estão licenciados. O Dentes ao sol (que terá Ignácio como corroteirista) e o O beijo não vem da boca foram licenciados pelo José Eduardo Belmonte. Os olhos cegos... envolverá Viviane Mendonça e André Godoi, dispostos a criar um universo adulto para o texto infantil. O cinema tem estado próximo, tem feito parte da vida dele — isso o deixa feliz", diz André.
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Uma alquimia fílmica encerrou a experiência do documentário. "Um elemento importante da construção do filme sempre foi juntar materiais bastante distintos e construir uma relação entre a vida dele, a obra (extensa e fragmentada) dele, a história do Brasil e do mundo, um certo zeitgeist (ele nasceu em 1936, foram muitas as mudanças que ele acompanhou e esteve perto), e a nossa relação mais íntima, que foi um dos últimos elementos que acertamos. Tivemos a percepção desde o início de que se tratava de um filme de cacos, tanto de textos quanto de imagens", demarca o fotógrafo.
Na feitura do documentário, a equipe não teve sucesso em resgatar o vídeo comemorativo em que Ignácio respondia como "se sentia" ao fazer 80 anos. "Ele olha para a câmera, bem de perto, e com um olhar adolescente, os olhos brilhando, vivos, fala sobre o tanto que ainda tem por fazer. Foi emocionante, uma cena que acabou não entrando no filme", lamenta. Nisso, André perseguiu imprimir na nova fita "a inquietude, o assombro e a perplexidade encantada" emanadas pelo pai. Não é só o conteúdo das obras que estabelecem o lado "revolucionário" evocado por Ignácio. "É algo presente na enorme quantidade de depoimentos de pessoas que foram profundamente afetadas pelos seus livros", entrega.
Entrevista // André Brandão, diretor
Como o seu pai, que escreveu críticas de filmes, se relaciona com cinema?
Recentemente, muitos dos livros dele estão licenciados para produtoras e diretores, que estão trabalhando em projetos. O Zero (com o diretor Eugênio Puppo empenhadíssimo), Não verás país nenhum, Dentes ao sol, O beijo não vem da boca e Os olhos cegos dos cavalos loucos estão licenciados. O Dentes ao sol (que terá Ignácio como corroteirista) e o O beijo não vem da boca foram licenciados pelo José Eduardo Belmonte. Os olhos cegos... envolverá Viviane Mendonça e André Godoi, dispostos a criar um universo adulto para o texto infantil. O cinema tem estado próximo, tem feito parte da vida dele — isso o deixa feliz. Meu pai começou a carreira como crítico, aos 16 anos. Daquela época, tive por legado o amor dele pelos filmes, pelas histórias e a noção de como o cinema foi libertador para ele no início da vida adulta.
O personagem de Humphrey Bogart, em O falcão maltês (1941), fala da "matéria da qual os sonhos são feitos". Pergunto: "De que imagens a literatura do teu pai é feita?". As palavras, em Não sei viver sem palavras, precedem as imagens?
Talvez o filme seja uma tentativa de encontrar palavras e imagens que sintetizem a vida e a obra dele. Não sei se consigo atrelar imagens específicas à literatura do meu pai como um todo. Penso em elementos, sagacidade, perplexidade, fantasia, entre outras coisas. Num primeiro momento do filme, acho que imagens e palavras nasceram junto. Pensando sobre a sua pergunta, me dei conta só agora que esse filme de fato nasceu junto com o meu nascimento. Meu pai escreveu, nos dias em que acompanhou minha mãe no quarto da maternidade, o conto A montanha mágica — O nascimento de André. Onde ele reflete sobre o nascimento, a vida, a morte e o cinema! São desse conto os trechos lidos com a minha voz no início do filme, e em mais dois momentos. Ele também filmou o parto e toda a minha infância com uma câmera Super8. E muitas dessas imagens são um eixo, uma camada importante do filme. Então, tenho a sensação que tudo foi meio ungido, evocado ali, nesse primeiro momento. É uma maneira poética de pensar e criar esse passado. Ao iniciamos o processo formal de fazer um filme, as palavras passaram a preceder as imagens, e guiaram todo o processo de captação e pesquisa.
Qual a satisfação de, em vida, celebrar uma personalidade como a do teu pai? Crê que ele aplacou o desgosto de nunca ter dirigido uma obra de cinema (como pretendia)?
É uma experiência bastante forte. Celebrar a sua história através de uma primeira obra onde tento começar a me expressar é uma junção forte das nossas histórias. E sim, fazer isso com ele vivo, presente, participando leva tudo a um patamar mais intenso e emocionante. É uma grande alegria ter ele participando de tudo, e ver que ele está bastante feliz com essa história também. Não sei se chegou a se tornar um desgosto, ele nunca ter dirigido um filme. Meu pai sempre seguiu próximo do cinema, não acho que haja um rancor ou tristeza quando ele fala sobre isso. O nosso filme o fez feliz e também essa aproximação com o cinema — o filme sendo feito ao redor dele, e com ele.
Qual foi a contribuição dele, em tudo? E, no teu olhar, o que Ignácio te introjetou, na vida, como pai capaz de fazer mea-culpa, diante de ausências?
Ele esteve inteiramente à disposição para o filme. Mas também ter preparado durante um longo tempo da vida um arquivo meticuloso, enorme, no qual mergulhamos. Ter nesse arquivo 38 rolos de Super8 que ele filmou nos anos 70 e começo dos 80. Ter escrito o texto do meu nascimento. Ter começado o filme, como mencionei. E por fim ter vivido uma vida tão rica e criado uma obra incrível, os elementos a partir do qual o filme foi construído. Quanto às meas-culpas dele são possibilitadas por uma nobreza de caráter e uma preocupação legítima com as pessoas, mas que são também uma conquista, resultado de um longo processo de abertura, de uma relação madura, uma aproximação que já vinha ocorrendo há algum tempo. Sinto que o filme foi um processo importante para dar mais vazão a essas conversas. Parte de um longo processo de abertura dele, de se desvencilhar da dureza herdada do meu avô, que ele menciona no filme. Processo que meu irmão e eu herdamos, à nossa maneira.
O "(eu) fui, e você é" (no trecho epistolar) traz que gosto para você?
"Eu fui, e você é". Ele começou um filme, eu criei e terminei esse filme, que é sobre ele, é um pouco dele, mas é o meu filme. Ele é porque meu avô foi, minha avó foi. Somos parte de uma linhagem que temos que honrar e superar ao mesmo tempo, a todo momento. Acho que isso traz uma certa confusão de identidades, onde a gente começa e a linhagem termina. É algo fascinante. Eu sou e o filme é porque ele foi, e o filme muda hoje o que ele é, o que eu sou.
A citação ao "muro espesso e intransponível entre Brasília e o resto do País" se refere à que obra? Esta desilusão persiste sob a tua percepção?
É do Verde violentou o muro — uma reflexão a partir do muro de Berlim, onde ele morou em 1982 e 1983. Acho que a desilusão persiste sim, não só desses aspecto como de muitos dos outros muros aos quais ele se refere nesse trecho, ‘o muro dentro das pessoas, com as dificuldades cada vez maiores de relacionamento, entre o homem e a mulher, entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre as raças’. Ao mesmo tempo em que muitos muros se quebraram nos últimos 40 anos, eles também se intensificaram. O medo, a polarização, a rejeição ao imigrante, ao outro, a busca por segurança no autoritarismo e no reacionarismo. As mudanças são atordoantes e todas as crises parecem existenciais, climáticas, nucleares, o domínio da inteligência artificial. Ao mesmo tempo, isso me lembra de uma citação que meu pai fez muito durante um período. Não me lembro exatamente, foi de quando leu Marco Polo, ou algo sobre Marco Polo, que tinha uma passagem assim: ‘Era o século 13 e o mundo enfrentava uma de suas piores crises…’ — algo assim. ‘Será que a vida não é feita de crises, e a gente acha que as nossas são as piores?’, ele dizia logo depois. Acho que tem desilusão sim, mas tem também um entendimento do lado trágico das coisas.
Teu pai deu trabalho, no amalgamado do material de toda uma vida? Como você constituiu um discurso fílmico dada a ideia de fragmentação atrelada à produção paterna?
Não acho que posso dizer que meu pai deu trabalho, não. Um elemento importante da construção do filme sempre foi juntar materiais bastante distintos, e construir uma relação entre a vida dele, a obra (extensa e fragmentada) dele, a história do Brasil e do mundo, um certo zeitgeist (ele nasceu em 1936, foram muitas as mudanças que ele acompanhou e esteve perto), e a nossa relação mais íntima, que foi um dos últimos elementos que acertamos. Tivemos a percepção desde o início de que se tratava de um filme de cacos, tanto de textos quanto de imagens, então a busca de coesão sempre foi um elemento que a gente considerava essencial. Foi um longo processo de depuração, entre montagem e roteiro, sobre o que era o filme e quais eram os seus elementos essenciais.

Diversão e Arte
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