Crítica // Foi apenas um acidente ★★★★★
Depois da exitosa colheita de reconhecimentos do compatriota Asghar Farhadi, autor de fitas como O apartamento, A separação e Um herói, sempre atrelada ao cinema iraniano, está a figura resistente de Jafar Panahi, que vira e mexe lida com sentenças de prisões e perseguição intelectual, em ciclo formalizado há mais de 15 anos.
A oposição ao regime teocrático, sob os desmandos do Líder Supremo, faz de Panahi um artista associado à desobediência e à clandestinidade. Nada difere do cenário da concepção de Foi apenas um acidente, recém-agraciado no circuito do cinema independente do Gotham Awards, com títulos de melhor diretor, melhor filme internacional e melhor roteiro. Tudo isso novamente jogou contra vitórias de O agente secreto (que perdeu, apesar de dois prêmios, a Palma de Ouro em Cannes justo para o filme de Panahi).
No mais recente longa (que rendeu nova condenação à prisão do diretor), entra em cena — e em crise, Vahid (Vahid Mobasseri), entregador iraniano atormentado pela redescoberta daquele que parece em muito com Eqbal (Ebrahim Azizi), um torturador encravado nos destinos de mais de 100 prisioneiros políticos. Desestruturado, e sedento de vingança, Vahid bebe dos conselhos de Safar, que propicia o encontro do virtual algoz de Eqbal com a esquiva Shiva (Maryam Afshari), uma fotógrafa ainda atormentada pelo massacre em comum.
Ciente do que seja agir com greve de fome e promover a cotidiana revolução, junto aos que orbitam fora do sistema iraniano, o contestador cineasta de Sem ursos (2022), 3 faces (2018) e O círculo (2000), mete dedos na ferida, trazendo à tona questões éticas, vinculadas à explosão de violências e requintes de crueldade. Inusitado que Panahi consiga pincelar tudo com ácidos momentos cômicos.
Na trama, Vahid ganha a cumplicidade da presença de inúmeras testemunhas para seu crime contra aquele que identifica como Eqbal: nisso estão o inquieto Hamid (Mohamad Ali Eliasmehr, na vida real, um carpinteiro que estudou teatro), e um casal de noivos (papéis de Majid Panahi, sobrinho do cineasta, e de Hadis Pakbaten). Uma dramaturgia instigante (que faz lembrar a de Relatos selvagens) e que abraça ações de piedade, rancor, transformações e absoluta incerteza. Foi apenas um acidente, vale a lembrança, foi escolhido pela França para representar o país em futura disputa ao Oscar de 2026.
