
Esquemas são desbaratados, há a agilidade de uma hilária verborragia atrelada à escrita de Ariano Suassuna e uma "espantosa tragédia" se reformula, na segunda parte do megassucesso O auto da Compadecida, que chega aos cinemas trazendo a lacuna de duas décadas desde que Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) teriam comungado. Ainda que impere a graça dos protagonistas, com certo esvaziamento de vitalidade, o filme se ressente da ausência dos brilhantes coadjuvantes como Diogo Vilela, Denise Fraga e Rogério Cardoso.
Junto com as risadas indefectíveis da dupla central, sem sossego, conflitos de "vida, paixão e morte" se restabelecem. Com gestos menos exacerbados, Chicó abraça o amigo que, entre qualidades, traz ainda "um restinho de cabelo", como menciona. "O sertão está se corrompendo", como aponta Clarabela (Fabíula Nascimento), nova personagem, que vem a reboque do pai, coronel Ernani (Humberto Martins, ótimo).
O crescente de progresso deixa o filme de Guel Arraes e Flávia Lacerda com ares de mix entre Lisbela e o prisioneiro (2003) e A máquina (2005). A direção de arte de Yurika Yamasaki convida à vibração que redefine o pastel e ocre dominantes na primeira jornada (de 2000). Agrega valor ter ainda Maria Bethânia entoando a bela Fiadeira. Canção da América (Amigo é coisa...) também toca, em momentos chaves.
Quem jogará para diferentes lados na trama (a exemplo de um "servidor de dois patrões") é João Grilo, que se aventura numa cruzada em que "carniça (o mau)" se afirma (num contraponto à otimista imagem inicial do longa). Guel Arraes e João Falcão, os roteiristas, capricharam em tornar mais complexo o cenário para os desmandos que imantam instrumentos como igreja, prefeitura e analfabetismo. Uma boa tirada vem de Chicó, quando define patrão como um "trem rico que não vale o que gato enterra".
Coabitado pelo bem e pelo mal, numa peleja intensa, João Grilo, capaz de comandar viradas de mesa e ser esperto, no que os outros julgam "casos pensados", abrirá as portas para um personagem hilário: o "bispo" de araque Antônio do Amor, que oferta o primeiro gole para o santo e coloca "as cedilhas nos Ccedilhas", numa coreografia feita em frente a um altar fraudulento. Nas façanhas, o ator Luis Miranda atravessa o filme com talento pontiagudo.
Junto com maracutaias que cercam a festa da padroeira, o filme avança nas alianças de Grilo e Chicó com o povo que Clarabela julga "primitivo". Tornado guia turístico, "o homem mais frouxo do mundo", Chicó seguirá criando graça com as três fraquezas — "preguiça, mulher e verso" — e soltando pérolas como confundir a tradução de Je t'aime com "formosa em japonês".