
Crítica // Emilia Pérez ★★★
Caridade, emoção, lamentos e segredos — elementos típicos de uma novela estão alinhavados no roteiro e desenvolvimento do longa Emilia Pérez, e é assinado por um consagrado cineasta francês, dono de quatro prêmios distintos no Festival de Cannes. O mais recente, justo por Emilia Pérez, vencedor do Prêmio do Júri (o mesmo vencido por Bacurau, em 2019, filme dos brasileiros Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles).
Numa entrevista recente, o diretor Audiard foi taxativo: "O cinema não fornece respostas. Ele apenas faz perguntas". Foi nesta base, a da sondagem, que ele criou um musical de fundo catártico, que repentinamente, se perdeu numa aceitação (de público) caótica. Numa tipificação sem precedentes, a atriz central (indicada ao Oscar), Karla Sofía Gascón (com histórico recheado de declarações preconceituosas nas redes sociais) e o diretor foram crucificados, antes mesmo de o filme ser visto. Repleto de complexidade nas situações, o longa trata de rejeição, conquista e controvérsia.
Desacatando o lema do "cante tua aldeia, e serás universal", Audiard preferiu cantar doutro canto: mergulhou numa cultura alheia, a mexicana e, se afundou, num submundo mórbido e impactante do narcotráfico. As músicas da dupla Camille e Clémet Ducol projetam uma ousadia, numa rede em que as personagens atuam como lobas. Perdoname, El mal e La vaginoplastia são algumas das músicas que ganham coreografias de ótima execução. Uma rede de apoios, ampliada (e até implodida, ao longo da narrativa), integra as narrativas de Manitas (a futura Emilia), Jesse (sua esposa) e Rita, a advogada, com esplendorosa atuação de Zoe.
A densidade na tela vem de saltos anteriores do cineasta na telona, com títulos polpudos como O profeta e Dheepan. Autêntico, dada a identidade interna da protagonista (por momentos, Gascón parece diabólica), Emilia Pérez trata com respeito um tema (a sexualidade) que, no passado, derivou para comédias como a setentista Gaiola das loucas. Em Cannes, Karla e as colegas Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz foram premiadas, sem espaço para maiores julgamentos ou hipocrisia.
De índole pérfida, Emilia Pérez (outrora uma frustrada mulher em corpo masculino) traz na trilha sonora recados diretos como o do doutor ("Minha porta não é a porta de Deus"), a do sensacionalismo contemplado (em cima de envolvente miséria) e a da falta de anestesia para algumas questões ("consertar a alma", entre outras).
Temas sensíveis avançam para as vistas de um público "mais amplo", como já declarou Audiard (autor do roteiro, ao lado de Thomas Bidegain e da parceira Léa Mysius, à frente de filmes sobre transposição de problemas difíceis como os do longa Ava). Frenético e incômodo, o longa custeado pelo afã de ser global e multicultural da Netflix, definitivamente, causou, como dizem. Se ofuscou o entendimento é outro debate.
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